60 anos de emancipação: moradores antigos ainda aguardam reparação histórica

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A Praça da Matriz de Lauro de Freitas em construção
A Praça da Matriz de Lauro de Freitas nos anos 60

A cidade de Lauro de Freitas celebra um importante marco este ano, quando comemora os 60 anos de sua emancipação política. E por mais que esta história já tenha sido lembrada em outras oportunidades nas páginas deste periódico, com a colaboração de jornalistas, pesquisadores, professores, alunos e munícipes, um sentimento de saudade e respeito à população, nos remonta novamente ao tema.

Para começar, é preciso destacar que, infelizmente, são poucos os registros documentais de domínio público sobre a história da cidade, que cresce vertiginosamente ano após ano sem possuir um arquivo público, um museu, para abrigar seu acervo de memórias.

Como viviam os moradores em 1962? Como se deu a linha do tempo do desenvolvimento nestes 60 anos? Água encanada, energia nas residências? Abertura de vias, ruas e estradas? Festas e costumes? Momentos relevantes das gestões anteriores, sobretudo as primeiras? Como se deu a escolha do nome das principais ruas da cidade? Falando nisso, alguém sabe informar quem foi Priscila Dultra? 

Trata-se de um pacote de fatos e acontecimentos que de alguma forma moldaram a cidade como vivemos hoje, e que são de extrema relevância no tocante ao resgate dessa recente, mas aparentemente já esquecida, história.

Disse a historiadora Emília Viotti da Costa (1928-2017): “Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”.

E antes que novos fatos venham a marcar a história da cidade, ainda existe por parte dos moradores mais antigos o desejo do resgate do nome de Santo Amaro de Ipitinga, topônimo utilizado pelos moradores desde os idos de 1552, e substituído quando da data da emancipação por Lauro de Freitas, em homenagem a uma personalidade política sem qualquer relação com os moradores locais. 

A questão é polêmica, nada simples e ganha novos capítulos com o passar dos anos. A lei orgânica original do município de Lauro de Freitas, que data de 1990, no seu artigo 25º, determina a “realização de consulta plebiscitária para a mudança do nome do município para Santo Amaro de Ipitanga – ou simplesmente Ipitanga”.

A consulta, que deveria ter acontecido num prazo de seis meses, mas jamais aconteceu, sequer dava como opção a manutenção da denominação atual, Lauro de Freitas.

Infelizmente, pela forma de condução e pouco resultado, tanto a proposta de plebiscito de 1990, quanto as demais iniciativas de retorno ao nome de Santo Amaro de Ipitanga, parecem ter perdido o sentido original de resgate histórico e identitário, passando a servir muito mais para o viés político e eleitoreiro.

A sugestão de homenagear o baiano, natural de Alagoinhas, Lauro Farani Pedreira de Freitas, candidato a governador da Bahia, em 1950, que durante a campanha faleceu em um acidente aéreo em Bom Jesus da Lapa, foi do então vereador de Salvador, Paulo Moreira de Souza. Foi ele quem primeiro articulou a emancipação de Santo Amaro de Ipitanga, apoiado pelas lideranças políticas locais.

A edição de fevereiro de 2020 da Vilas Magazine, destacava uma nova intenção da atual gestão municipal em repor o nome histórico original da cidade, quando seria encaminhado projeto de lei para apreciação da Câmara de Vereadores. O que até o momento não aconteceu.

Não é a primeira vez que a prefeita Moema Gramacho (PT) declara publicamente concordar com a reposição do nome, apesar de em alguns momentos se contradizer ao lembrar que a mudança de nome implica em custos aos cofres públicos para a alterar os dados cadastrais do CNPJ das empresas. 

Já existe também quem defenda a manutenção do nome Lauro de Freitas, quer seja por razões práticas, comerciais e até burocráticas, quer seja por diferenças religiosas. Representantes das várias denominações evangélicas tradicionalmente se opõem à reposição do nome histórico por conta de suposta conotação ao catolicismo.

Para os nativos, cada vez mais raros, e moradores mais antigos da cidade, trata-se de uma questão de respeito às suas raízes culturais. Não à toa, ainda, muitos deles ainda se referem a cidade como Santo Amaro de Ipitanga.

Transformações na política nacional marcaram o ano de 1962

Era julho do ano de 1962 e um sentimento de alegria tomava conta de todo o país: a Seleção Brasileira conquistava o bicampeonato da Copa do Mundo de Futebol, superando na final a forte seleção da Tchecoslováquia, por 3 a 1, com gols de Amarildo, o substituto de Pelé (contundido logo na segunda partida), Zito e Vavá. O time contou ainda com as jogadas incríveis Djalma Santos e Didi, além da genialidade de Garrincha.

Mas se no esporte o momento era de alegria, o mesmo não acontecia no cenário político. O país, de uma forma geral, vivia, há certo tempo, momentos de grandes agitações.

O presidente era João Goulart, conhecido como Jango, que governou de 1961, após renúncia de Jânio Quadros, de quem era o vice, até 1964. O ato de sua posse gera por si só um capítulo à parte, que contou inclusive com o movimento “luta pela legalidade”, encabeçado pelo seu cunhado, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, e diversos apoiadores pelo Brasil.

Foram os últimos anos da Quarta República, período compreendido entre 1946 e 1964, marcado pela ampliação das demandas da população e o surgimento de movimentos sociais, através do fortalecimento do movimento estudantil e dos sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais.

Vale lembrar também que foi o período que antecedeu o golpe militar, que se arrastaria por 21 anos. 

Neste mesmo ano, na Bahia, Lomanto Júnior vencia a disputa para o governo do estado, tendo Orlando Moscoso como seu vice, Antônio Balbino e Josaphat Marinho para o senado. Lomanto recebeu o comando do estado das mãos de Juraci Magalhães, que concluía seu segundo mandato de governador. De 1959 a 1962, Juraci concluiu importantes obras no estado, como as hidrelétricas de Funil e Barranco, implantou a Companhia de Eletricidade da Bahia (Coelba), construiu parte da avenida do Contorno, ligando a Cidade Alta à Cidade Baixa, em Salvador, entre outras obras. Caberia a Lomanto, seu sucessor, dar continuidade. E assim o fez.

Tão logo assumiu o governo do estado, que na época era o terceiro mais populoso do país, com cerca de 5,9 milhões de habitantes, ficando atrás apenas de São Paulo e Minas Gerais, inaugurou o trecho estadual da estrada Rio-Bahia, com 1.657 km. Nos anos de sua administração, inaugurou o serviço de abastecimento de água da capital e de outras 53 cidades, possibilitou a implantação de pequenas e médias indústrias no interior, assim como o desenvolvimento da agricultura e da pecuária, através do Banco do Desenvolvimento do Estado da Bahia (Baneb) e na área de saúde, teve importante papel quanto a erradicação da varíola no estado.

Emancipação como sinônimo de progresso

Naquele mesmo ano de 1962, um fato mudaria o rumo da história de uma fatia da população da capital baiana. Concentrados em um trecho de cerca de 57 km² nas cercanias da Base Aérea de Salvador, fazendo fronteira com os municípios de Simões Filho e Camaçari, os moradores da freguesia de Santo Amaro de Ipitanga levavam uma vida simples, com inúmeras dificuldades de infraestrutura e acesso à serviços básicos.

Apesar de gerar insatisfação dos munícipes com a troca do nome de freguesia de Santo Amaro de Ipitanga para Lauro de Freitas, a autonomia política e administrativa conquistada com a emancipação política era sinônimo de esperança para a chegada do progresso, que já estava sendo sentido através de importantes obras no estado.

Os munícipes eram, sobretudo, pessoas vindas de outros bairros de Salvador, a exemplo do Nordeste de Amaralina, funcionários da Base Aérea ou das empresas que se instalaram nas proximidades da mesma, além de pessoas em busca de melhores condições de moradia.

Vale lembrar que, de fato, a comunidade tem sua origem datada em 1552, quando uma missão jesuíta construiu a igreja matriz de Santo Amaro de Ipitanga nos lotes de terras que o então governador-geral, Tomé de Souza, cedeu à Garcia D’Ávila. Assim como em tantas outras comunidades pelo Brasil, índios catequizados deram origem às populações, que se firmavam no entorno da igreja, definindo assim costumes e tradições.

Entra neste contexto também o destaque para o importante papel do Rio Joanes, cujas margens presenciaram lutas pela independência nos anos de 1800, e o desenvolvimento econômico. A proximidade com o mar favorecia o escoamento da produção agrícola, fortalecendo a pecuária e os engenhos de açúcar, com destaque para Japara, Cají, Quingoma e São Bento. A força de trabalho utilizada eram os negros, africanos escravizados, mas que conseguiram deixar sua marca ao longo dos anos através das comidas, samba de roda e religião de matriz africana.

Entre os nativos de Santo Amaro de Ipitanga, já frutos dessa descendência, acredita-se que mais da metade da população da época nasceu pelas mãos de parteiras. Na freguesia não havia hospitais e nem, se falava em pré-natal. Vovó Lúcia era uma das parteiras mais conhecidas. Quando nasciam, as crianças eram aparadas pelas parteiras, que as banhavam em bacias de alumínio e lhes cortavam o umbigo. Com sete dias a parteira voltava para a visita por conta do ‘mal de umbigo’, assim contam os mais velhos.

A água era coletada diretamente nas nascentes, em grandes tonéis de madeira, e vendida de porta em porta; mas tinha quem fosse com sua lata na cabeça buscar diretamente da valeta, que hoje não existe mais. Já a energia elétrica funcionava através de geradores doados pela Base Aérea, que às 22h eram desligados. A maioria das casas tinha candeeiro e lampião.

O transporte era feito através do caminhão de João Expresso. Saía do bairro de Portão às 4h, levando para Salvador quem precisasse mercar seus produtos na feira ou procurar um médico. “Por volta de 11h30 ele já estava de volta, e por onde passava ia jogando balas para as crianças. Por isso chamávamos ele de vovô”.

Mesmo as ruas mais importantes da nova cidade não contavam com asfalto. Talvez tenha sido neste ponto que os moradores sentiram o primeiro sopro de progresso ao verem a Rua da Lama e a rua Romualdo de Brito, uma das principais do Centro, por exemplo, serem ‘patroladas’ logo nos primeiros meses após a emancipação.

A atuação dos primeiros vereadores também é um destaque do período, como contou Nivaldo Santos Nery (filho de Jaime da Silva Nery, Juiz de Paz em Santo Amaro de Ipitanga) para a Vilas Magazine, no ano de 2018, edição de comemoração dos 56 anos de emancipação.

As verbas públicas passaram a desempenhar um papel importante na criação de empregos, sobretudo públicos. Antes disso, Santo Amaro de Ipitanga contava apenas com Abelardo Andrea, militar do Exército e vereador de Salvador até 1951, que apadrinhava o distrito na Câmara da capital. Há uma rua com o nome dele no Centro de Lauro de Freitas.

Quer seja por amor às raízes, quer por acreditar no potencial do novo polo de negócios, de certo o que se sabe é que a emancipação cumpre seu papel e a cidade de Lauro de Freitas se destaca no cenário estadual.

O visível crescimento pode ser percebido também pelos números de habitantes: se em 1970 o Censo computava 1.869 domicílios, hoje já passam de 50 mil; se a cidade contava com 10 mil habitantes, em 2021 ultrapassou a marca dos 200 mil.

NOTA: Alguns relatos citados neste material, foram coletados por alunos da Escola Municipal Ana Lúcia Magalhães, em 2019, para a produção do documentário “Memórias de Santo Amaro de Ipitanga”, um importante registro da história oral, contada pelos antigos moradores, que aos poucos estava se perdendo.

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