
Dona Gilce, uma senhora distinta, com pouco mais de 50 anos, mas que tem feito uma grande diferença para animais de rua, foi em busca de Moisés. Foram três dias tentando o resgate. Por instinto, talvez por medo, ele não se deixava capturar. Subia e descia ladeira, mancando. Mas Gilce não desistiu e hoje Moisés tem um lar.
A história de Moisés, por mais que ele tenha perdido a pata – precisou amputar –, tem um final feliz: ele é um dos moradores do abrigo Aumigos, no Jardim das Margaridas, nos limites entre Lauro de Freitas e Salvador. Assim como Moisés, todos os animais que estão no abrigo foram resgatados por Gilce Santana dos Santos, que viu o rumo de sua vida mudar há cerca de 10 anos atrás.
Por questões profissionais, Gilce foi morar em Jacobina, distante 337 km da capital baiana. No mesmo período, a filha passou no vestibular e deixou seu cachorro de estimação, aos cuidados da mãe, que logo se afeiçoou. “Passava diariamente por vários animais abandonados, sem amor, bebendo água suja, e isso começou a me incomodar. Como posso dar tanto amor ao meu animal e ver tantos outros em situações ruins e não fazer nada? Pesquisando sobre políticas públicas de proteção animal não achei nada, nem em Jacobina nem em lugar algum”, conta.
Logo ela retornaria para Salvador, mas aquela sementinha do “preciso fazer algo pelos animais” estava plantada e começando a germinar. Gilce morava na Pituba, próximo à praça Nossa Senhora da Luz, ambiente onde eram comuns ‘desovas’ de animais. Ver cenas como essas, com bastante frequência, fez com que ela desse o primeiro passo, atuando como voluntária no abrigo São Francisco de Assis, em Paripe. “Comecei doando um dia de voluntariado por semana. Ia de ônibus da Pituba até Paripe, mantendo meu compromisso. Ajudava em tudo que podia dar dignidade aos animais, como, manter o local limpo e garantir água limpa para beber. Começamos a mudar vícios e paradigmas das pessoas que trabalhavam no local e de repente passei a ir três dias na semana; não demorou, de três passaram a ser cinco dias. Por fim, passei seis meses indo para o abrigo, sete dias da semana, muito feliz com os resultados positivos”, relata, orgulhosa.
Só que Gilce ainda não sabia que sua relação com os animais passaria muito além do voluntariado. Um dia, a caminho do abrigo, de carona com uma amiga, avistou uma cadela abandonada no acostamento da BR-324. Retornaram, e aconteceu o primeiro resgate de Gilce. O animal, que recebeu o nome de Tereza, foi levado para seu apartamento. Com Gilce a cadela viveu por quatro anos, até ser adotada, já velhinha, e ganhar um novo lar, onde viveu por mais três anos.

Gilce dedica sua vida aos animais há 10 anos
A partir daí os resgates surgiam a todo momento. “Quando percebi estava com sete cachorros em um apartamento quarto-sala”, diz.
Consciente de que sua missão era maior, Gilce se mudou para uma casa em um condomínio, em Itapuã. Em pouco tempo o número de animais dobrou. O espaço mais uma vez ficou pequeno e veio mais uma mudança. Há quatro anos Gilce está no Jardim das Margaridas, onde mantém o abrigo Aumigos. Através da ajuda de parceiros começou a montar uma estrutura adequada para receber os animais, mas ainda falta muito.
CUIDADO E MONITORAMENTO
Miguel, Max, Luma, Estrela, Sam, Café. Gilce identifica cada animal por seu nome e latido. Ao todo são 112 cachorros, e ainda tem 19 gatos. Como são muitos animais nas ruas, o critério para fazer parte do abrigo são os animais em risco de vida, seja por ameaça de morte ou alguma doença crônica.
“Não posso receber todos os animais que chegam na minha porta, até porque não seria solução. O ideal seria que as pessoas aprendessem a cuidar. Não estou dizendo que as pessoas devem encher suas casas de animais, mas cada um pode fazer um pouquinho e existem formas de fazer isso”, destaca Gilce.
Todos os animais passam pelos menos procedimentos: o hemograma, que aponta possíveis patologias que precisam ser tratadas; os animais são vermifugados, vacinados, castrados e depois ficam no abrigo, disponíveis para adoção, ou voltam para as ruas, mas de forma monitorada. Animais já velhinhos ou com doença crônica, ficam no abrigo até desencarnar. “Contamos com o apoio de um grupo de veterinários, como os médicos Moacyr Neto, Eliane Costa, Maurício Moura, Suzana Aguiar e a mais recente, a oftalmologista Flávia Accioli Ramos. Juntos, esses profissionais possibilitam o tratamento dos animais a custo zero ou cobrando taxas que não conseguiríamos em nenhum outro lugar”.
A demanda do abrigo é de 600 kg de ração por mês. Os animais são alimentados apenas uma vez por dia, mas em virtude das dificuldades atuais, o número de doações caiu significativamente. “Os animais ainda não se acostumaram com essa nova realidade, mas pelo menos ainda estamos conseguindo manter uma ração premium.
Muitas pessoas, erroneamente, avaliam que a ração doada para o abrigo pode ser de qualquer qualidade. Quando alimentamos os animais com ração premium, garantimos a eles maior absorção de nutrientes, o que ajuda a manter os animais alimentados por mais tempo, diminuindo a quantidade de remédios e evitando a necessidade de suplementação. A quantidade de fezes também diminui, o que ajuda a manter o ambiente mais tempo limpo”, esclarece Gilce.
O abrigo conta hoje com dois doadores fixos e pessoas que ajudam esporadicamente quando Gilce faz algum apelo pela Internet. Aline, sua filha, é quem mantém as despesas fixas do abrigo, como água e energia. “Hoje precisamos terminar a estrutura de canil, que já foi iniciada, para melhor abrigar os animais. Mas como não temos uma receita fixa, todo o mês a nossa principal luta é para garantir a alimentação e os medicamentos, quando necessário”, frisa.
Além dos animais que estão no abrigo e os que retornam para as ruas de forma monitorada, Gilce ainda mantém cachorros de grande porte em um lar temporário, no bairro de Cassange, a uma taxa de R$100,00 por animal. “Os animais que estão no lar precisam ser adotados para que outros possam receber os cuidados. Entendo que é um trabalho de consciência. Esses animais não são meus, eu os guardo, mas eles tem vida autônoma e precisam dos cuidados de todos os cidadãos”.
SEGUINDO O EXEMPLO

“Na Europa não existem cachorros nas ruas. Os gatos sim, e são cuidados de forma monitorada: damos comida, água, cuidamos da saúde, garantimos a dignidade, mas eles continuam vivendo no seu ambiente. Não precisamos levar para casa ou abrigos. Aqui no Brasil é a primeira vez que vejo essa iniciativa”, destaca.
No trabalho desenvolvido por Gilce, os animais, depois de resgatados e tratados, e não havendo necessidade de permanência no abrigo, são devolvidos ao seu ambiente, próximo aos pontos de apoio onde a ração e a água limpa são garantidos aos animais, por protetores anônimos. “Isso é dignidade. Indigno é ver um animal na rua tendo que beber água suja em poças, por necessidade”, comenta.
O trabalho ainda enfrenta algumas resistências. A população joga resíduos nos galões usados para colocar a ração e a água, mas Gilce é persistente, e aos poucos uma nova consciência é construída. “São em média três meses fazendo reposição de galão que é quebrado, tirando lixo, enfim. Não sou eu quem tem que desistir, mas as outras pessoas. E os galões estão lá. Os animais passam, comem, bebem sua água e segue o seu caminho”, destaca.
MAUS-TRATOS

Os animais resgatados por Gilce sofrem os mais diversos tipos de maus-tratos. Favela ainda se recupera da queimadura de óleo quente
Numa segunda-feira a sobrinha de Gilce foi no bairro de Vila Laura, em Salvador, visitar a filial da empresa onde trabalha. Não demorou muito, um cachorro entrou ‘cabreiro’ pela porta e rapidamente se escondeu no banheiro, ferido e sem deixar que ninguém se aproximasse. Os funcionários tentaram expulsar o animal, da mesma forma que fizeram na semana anterior. Sim! Já era a segunda vez que o animal entrava na loja, se escondendo ou ‘pedindo socorro’. Quando Gilce chegou no local encontrou o animal com uma grave queimadura no pescoço, aparentemente provocada por óleo quente.
A história desse animal, que no abrigo ganhou o nome de Favela, chama atenção pela crueldade, mas infelizmente não é um caso isolado. Os animais chegam ao abrigo nas mais diversas situações, desde abandono à zoofilia, além de queimaduras.
“De tudo que vejo se você me perguntar o que mais me choca é a zoofilia. Nós temos hoje cinco animais seviciados. A maldade sempre vai existir, pois a maldade está no ser humano. Uma pessoa que abusa sexualmente de um animal é capaz de maltratar também uma criança, um idoso. Mas ele não faz. Não faz porque sabe que existem leis, e se descoberto, será punido. Mas contra o animal não tem punição”, frisa Gilce. Ela destaca que um dos grandes problemas é a falta de informação e cuidados, sobretudo da população mais carente, que quer o animal, mas quando ele fica doente é abandonado nas ruas, pois a pessoa acredita que será contaminada. O problema passa a ser de todos, um problema de saúde pública.
“Isso só vai acabar quando o vizinho do lado fortalecer o seu discurso e se juntar a sua luta; quando a sociedade toda disser “eu não quero mais isso” e começar a denunciar; quando a sociedade disser ao poder público “nós queremos uma delegacia de proteção animal, políticas públicas de proteção animal, um hospital veterinário”, conclui Gilce.
Pelo Instagram @abrigoanimaisaumigos ou tel.: / whatsapp (71) 99324-9485 é possível ter mais informações sobre o abrigo, conhecer os animais, além de ajudar, sendo um parceiro fixo ou nas diversas campanhas lançadas ao longo do ano.