Entenda a PEC que pode privatizar áreas da União no litoral brasileiro

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debates sobre pec das praias continuam

O Senado Federal retomou na última semana de maio as discussões em torno da chamada “PEC das Praias”, a polêmica proposta de Emenda à Constituição que transfere terrenos de marinha em áreas urbanas da União para estados e municípios ou proprietários privados. O debate ultrapassou os limites do Congresso Nacional e da Esplanada dos Ministérios e se intensificou com o bate-boca virtual entre a atriz Luana Piovani e o jogador Neymar – que anunciou recentemente parceria com uma construtora para empreendimentos na beira do mar.

Após dez meses parada, a PEC voltou a ser discutida no Senado, com uma audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça. O pedido de realização dessa sessão, em agosto do ano passado, já havia sido uma manobra do governo para buscar que a proposta fosse votada na comissão.

O requerimento havia sido apresentado pelo senador governista Rogério Carvalho (PT-SE). Naquela mesma sessão, o presidente da CCJ, senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) afirmou que muitos senadores estavam “cobrando a deliberação dessa matéria”.

A PEC foi aprovada pela Câmara dos Deputados em fevereiro de 2022. O seu principal ponto é a mudança nas regras referentes aos terrenos de marinha, permitindo a passagem de algumas dessas propriedades da União para estados, municípios e para entes privados.

O relator do texto na comissão, senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que deu um parecer favorável à proposta, apontou que ela dará mais segurança jurídica aos atuais ocupantes dessas áreas, vai aumentar a arrecadação e atender necessidades de municípios com grandes áreas litorâneas.

Por outro lado, ambientalistas apontam riscos para a diversidade ecológica, com a transferência dessas áreas. O governo federal ainda aponta que a demarcação e administração desses terrenos são fundamentais para garantir a gestão adequada dos bens da União. E, no meio da discussão, ainda surgiram versões de que praias poderiam ser privatizadas e que a PEC pode regularizar grandes conglomerados urbanos, como o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.

Entenda os principais pontos da PEC, que se tornou alvo de grande disputa entre ambientalistas e o mercado imobiliário e prefeituras de cidades litorâneas.

O que são os terrenos de marinha e qual a situação atual?

Os terrenos de marinha são áreas à beira-mar, ocupando uma faixa de 33 metros ao longo da costa marítima e das margens de rios e lagos que sofrem a influência das marés. Elas foram medidas a partir da posição da maré cheia do ano de 1831. Ou seja, em cidades litorâneas, são áreas que ficam atrás da faixa de areia. Pela legislação atual, essas áreas pertencem à União. A ocupação por particulares, comércio ou indústrias é feita mediante o pagamento de uma retribuição, que depende do regime, e o responsável deve recolher anualmente o foro ou a taxa de ocupação.

O que mudaria, se a PEC em discussão fosse aprovada?

O texto da PEC prevê que seguirão propriedade da União as áreas afetadas ao serviço público federal, inclusive aquelas que são destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos, como os portos, as unidades ambientais federais e as áreas ainda não ocupadas.

As demais passariam ao domínio pleno de estados e municípios que as estejam usando para os seus serviços públicos, incluindo por meio de concessionárias e permissionárias. 

Proprietários e ocupantes de imóveis inscritos junto ao órgão de gestão do patrimônio da União ou não inscritos, mas que tenham ocupado o local pelo menos cinco anos antes da publicação da emenda constitucional, também são abrangidos pelo texto. Ficaria proibida a cobrança de foro ou de taxa de ocupação dessas áreas, a partir da data de publicação desta emenda constitucional.

Como seria essa transferência? Os donos de imóveis precisariam pagar?

A PEC prevê que a transferência seria gratuita no caso de áreas ocupadas por habitação de interesse social. As demais se dariam por processos onerosos, o que significa que seus ocupantes deverão comprar os terrenos.

As praias seriam privatizadas?

O relator Flávio Bolsonaro apontou que isso é uma “fake news” da esquerda. De fato, o texto aborda apenas as questões dos terrenos de marinha, portanto as praias não seriam privatizadas e poderiam ser frequentadas, sem o pagamento por seus usuários. No entanto, especialistas apontam que haverá a possibilidade de que empreendimentos, como resorts, controlem os acessos às áreas.

Durante a audiência, Carolina Gabas Stuchi, secretária-adjunta da Secretaria de Gestão do Patrimônio da União afirmou que o modelo atual cumpre “um papel bastante importante para a preservação do caráter público das praias brasileiras” e disse que a PEC “favorece a privatização e cercamento das praias”.

Quantos terrenos são de marinha?

O governo federal afirma que o Brasil tem cerca de 48 mil km lineares em terrenos de marinha, considerando reentrâncias em estados como Pará e Maranhão. Deste total, aproximadamente 15 mil km lineares estão demarcados. A partir de dados do Censo Demográfico de 2022, a Secretaria do Patrimônio da União estima que 2,9 milhões de imóveis estejam em terrenos de marinha, mas apenas 565.311 deles estão cadastrados.

Durante a audiência no Senado, a secretária-adjunta da Secretaria de Gestão do Patrimônio da União do Ministério da Gestão, Carolina Gabas Stuchi, afirmou que haveria um “caos administrativo”: Ainda que a PEC fosse aprovada hoje, a gente teria um caos administrativo, um caos na gestão disso, porque teríamos que achar e cadastrar todos os ocupantes desses quase 3 milhões de imóveis que ainda não conhecemos”. 

Como está o processo de demarcação? 

Segundo a SPU (Secretaria do Patrimônio da União), a demarcação foi concluída no Amapá e está em andamento no Pará, Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Paraná. No Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, o processo foi feito em regiões específicas. Nos demais estados litorâneos, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Bahia, a demarcação será começada ainda neste ano. A SPU afirma que cerca de 4 mil km lineares foram demarcados entre 1831 e 2019. O processo foi acelerado nos últimos anos e o tempo médio por estado caiu para dois anos, o que levou à demarcação de 11 mil km lineares entre 2020 e 2023.

Qual o valor desses terrenos e o impacto na arrecadação federal?

O ministério da Gestão afirma que a União arrecadou cerca de R$ 1,1 bilhão com os terrenos de marinha em 2023, sendo que 20% do valor foi repassado aos municípios. O montante corresponde aos R$ 823,7 milhões arrecadados com a taxa de ocupação de 2% sobre o valor do terreno somados aos R$ 334,3 milhões com o foro de 0,6% (também sobre o valor do terreno).

Há risco de danos ambientais?

Ambientalistas e integrantes do governo apontam que muitas dessas áreas constituem uma faixa de segurança, incluindo para evitar cheias, além de muitas áreas se referirem a alguns ecossistemas importantes para a sociedade. “Acabar com a instituição dos terrenos de marinha, da faixa de segurança e, principalmente, ocupar essas áreas é perder ecossistemas e serviços ecossistêmicos, perder qualidade de vida e bem-estar humano nas cidades costeiras, um bônus para pouquíssimos e um ônus para toda a sociedade brasileira muito alto”, afirma Marinez Eymael Garcia Scherer, coordenadora-geral do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Quais os principais argumentos em favor da PEC?

O relator, senador Flávio Bolsonaro, aponta que o principal benefício da PEC é a segurança jurídica para quem atualmente ocupa esses terrenos. Além disso, cita a geração de empregos e potencial de aumento da arrecadação, com eventuais empreendimentos turísticos.

Renato Machado / Folhapress

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