Independência na Bahia eclodiu com levante sufocado e madre assassinada

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simbolo da independencia da bahia
Foto: CAMILA SOUZA/GOVBA

Conflitos começaram em 19 de fevereiro de 1822, deixaram centenas de mortos e ajudaram a consolidar unidade nacional

Os tiros irrompiam contra o Forte de São Pedro, fortificação encravada na região central de Salvador, na madrugada de 19 de fevereiro de 1822. A cidade amanheceu com o avanço das tropas portuguesas, que também atacaram os quartéis da Palma e da Mouraria, onde estavam os militares nascidos no Brasil, naquela época parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

A ofensiva marcou o início da guerra pela Independência do Brasil na Bahia, que chega aos 200 anos ocupando raras páginas nos livros didáticos, mas com memória viva e marcas profundas em Salvador e em cidades do Recôncavo Baiano, onde as batalhas se desenrolaram.

O conflito armado, que só se encerrou após 16 meses com o triunfo das tropas brasileiras em 2 de julho de 1823, deixou um saldo de centenas de mortos e teve um papel decisivo na manutenção da unidade nacional, junto com as disputas contra portugueses em províncias como Pará, Maranhão e Piauí.

As primeiras batalhas na Bahia eclodiram com a escalada das animosidades entre os portugueses e brasileiros. Deliberações das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa e do governo dom João 6º foram o ponto de partida do conflito.

Além de exigir o retorno do Brasil à condição de colônia, o retorno de dom Pedro 1º a Portugal e a retomada das restrições ao comércio suspensas com a abertura dos portos, nomearam militares portugueses como novos governadores de armas das províncias brasileiras.

Na Bahia, foi indicado para o posto o tenente-coronel português Inácio Luís Madeira de Melo, alçado à patente de brigadeiro, que substituiria o brigadeiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães, nascido no Brasil. A Carta Régia com a nomeação chegou ao Brasil no dia 15 de fevereiro de 1822.

“Com essa nomeação, as tropas se dividiram entre os nascidos na Bahia e os nascidos em Portugal. Essas tropas se aquartelaram em fortificações de Salvador e foram às vias de fato nas ruas da cidade”, explica o historiador Sérgio Guerra Filho, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. 

Naquela época, os batalhões eram separados de acordo com as origens dos militares. Assim, havia tropas de brancos, de pardos e de pretos, que tomaram caminhos distintos nas batalhas da Independência.

O levante das tropas de militares, milicianos e civis nascidos no Brasil acabou sendo sufocado em fevereiro de 1822 pelos portugueses, que mantinham um grande efetivo militar em Salvador, além de melhores armamentos.

“A Bahia, até por ter sido capital, tinha um grande contingente de tropas portuguesas”, diz a historiadora Antonietta D’Aguiar Nunes, associada do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, que diz ver as guerras em 1822 e 1823 na Bahia com um movimento de expulsão dos portugueses em um Brasil independente já consolidado.

Mas entre os primeiros tiros e a rendição, um cenário de guerra tomou as ruas de Salvador, com a ocupação de fortes, quartéis e trocas de tiros.

No amanhecer de 19 de fevereiro, militares portugueses invadiram o Convento Nossa Senhora da Conceição da Lapa, pois suspeitavam que rebeldes brasileiros se escondiam no local, cuja torre proporciona uma visão privilegiada da cidade. E foi esta invasão que desencadeou um dos episódios mais marcantes da guerra da Independência na Bahia, o assassinato da abadessa Joana Angélica, aos 60 anos.

Joana Angélica entrou para o noviciado aos 20 anos e viveu as quatro décadas seguintes enclausurada no Convento da Lapa, então ligado à Ordem da Imaculada Conceição. Foi escrivã, mestre de noviças, conselheira e vigária, até que chegou ao posto de abadessa.

Na manhã de 19 de fevereiro, os soldados portugueses invadiram o convento e agrediram o capelão Daniel Lisboa, que tombou desmaiado. Ao forçarem o portão para invadir o claustro, depararam-se com Joana Angélica, que com os braços abertos e segurando um crucifixo tentou impedir a entrada dos militares. Morreu atingida por golpes de baioneta.

“Na fé católica, ela é uma mártir porque deu a vida para manter a sacralidade do convento. Do ponto de vista histórico, sua morte reforçou o apoio dos baianos contra o jugo português”, explica José Trindade Lage, diretor da Fundação Dom Avelar, entidade ligada à Arquidiocese de Salvador.

O assassinato de Joana Angélica causou comoção na Bahia e consolidou uma imagem de crueldade em relação às tropas portuguesas. O comandante Inácio Luís Madeira de Melo passou a ser conhecido como “malvado Madeira”.

A vitória e a ocupação militar dos portugueses se consolidaram quando os rebeldes brasileiros fugiram para o Recôncavo baiano, onde implantaram um governo paralelo em Cachoeira (120 km de Salvador) e começaram a organizar a resistência e a retomada da capital. Foi apenas o primeiro passo de uma guerra que durou 16 meses, perpassando o 7 de Setembro, quando a independência foi proclamada por dom Pedro 1º. O que começou como uma disputa em torno do comando militar da província encontrou terreno fértil na sociedade baiana.

A historiadora Patrícia Valim, professora da Universidade Federal da Bahia e que atua em cooperação técnica com a Universidade Federal de Ouro Preto (MG), avalia a época das guerras da Independência nas províncias como um período em que estavam em disputa diferentes projetos de Brasil. “Tínhamos projetos muito avançados de nação, sobretudo pensado pelas províncias dos chamados atualmente Norte e Nordeste, que foram violentamente derrotados. A Bahia e as demais províncias elaboram projetos extremamente interessantes e vanguardistas para a época”, afirma.

O avanço das ideias de vanguarda, contudo, esbarrou na aliança entre os rebeldes brasileiros com os donos de engenhos do Recôncavo, cujo modelo de produção se baseava no trabalho escravo.

Como aponta o historiador Luís Henrique Dias Tavares (1926-2020), proprietários de terras, escravos, engenhos e currais de gado viviam achacados pelos juros de comerciantes portugueses e ficaram ao lado dos brasileiros. Daí que as primeiras discussões entre os nascidos na Bahia não giravam em torno da Independência, mas sim acerca da manutenção do Brasil na condição de Reino Unido. Para Dias Tavares, era um arranjo que priorizava a manutenção do tráfico negreiro e do sistema de trabalho escravo.

Esse arranjo fez com que os baianos aderissem em 1823 ao projeto de Independência capitaneado por dom Pedro 1º, que ajudou na consolidação da derrota dos portugueses com o envio de reforços às tropas que lutavam na Bahia.

Sérgio Guerra Filho destaca o caráter conservador da Independência, que manteve uma monarquia, a escravidão, o modelo de latifúndio e o exercício da política como um privilégio dos grandes proprietários de terras e escravos. “A guerra da Bahia tem esse paradoxo. Ela só foi possível com esse grande contingente popular. Mas essas pessoas ficaram a ver navios e não lograram grande parte dos seus anseios de liberdade e melhores condições de vida”, afirma.

Mesmo assim, o caráter popular da guerra se manteve vivo por meio da construção da mitologia em torno do 2 de julho. Figuras como o caboclo e cabocla, que simbolizam a presença de negros índios das lutasda Independência, reafirmam o protagonismo popular.

Por meio destes mitos e símbolos, este período histórico ainda hoje mantém marcas profundas na Bahia. O Cortejo do 2 de julho se consolidou como uma das maiores manifestações cívico-populares do país, com a população tomando as ruas do centro histórico de Salvador.

Personagens centrais da guerra como Maria Quitéria, Lord Cochrane e General Labatut dão nomes a ruas, bairros são retratados em monumentos na cidade. A abadessa Joana Angélica é cultuada tanto por católicos quanto por espíritas. Estes últimos veem a abadessa como uma das reencarnações de mentora espiritual Joanna de Ângelis. Entre os católicos, Joana Angélica é vista como uma mártir. É cultuada por fiéis que fazem preces e pedidos de fiéis que visitam o seu mausoléu no Convento da Lapa: “As pessoas enxergam uma santidade nela”, diz José Trindade Lage. A Igreja, contudo, ainda não encontrou um patrono para custear os processos que dão início à beatificação Joana Angélica. 

Historiadores, por sua vez, trabalham para aprofundar as pesquisas sobre as batalhas da independência e dar maior visibilidade aos conflitos armados que deixaram centenas de mortos nas regiões Norte e Nordeste.

Para a professora Patrícia Valim, diante de todas as lutas que aconteceram nas províncias do Norte e Nordeste, o 7 de Setembro deve ser encarado como a primeira grande derrota do Estado brasileiro. “Nós perdemos. O Estado que sai daí é um estado autoritário, centralizador, escravista e sudestino, com interesse nas regiões de São Paulo e Rio de Janeiro. E não é por acaso que a gente se debate com isso até hoje. Essa história continua à margem da história nacional”.

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