Rede especializada facilita a vida do peregrino em roteiros encantadores, que passam por ruínas, catedrais e vilarejos
Deitados ao chão, encostados às pilastras, os peregrinos fazem do centro histórico de Santiago de Compostela, patrimônio da humanidade e capital da Galícia, no noroeste da Espanha, um espaço de contemplação.
Os nove caminhos reconhecidos para se chegar até ali estão marcados na praça do Obradoiro, vindos dos quatro cantos e que se unem ao centro pela última concha de vieira, símbolo que guia os peregrinos em toda a jornada.
O clima é de felicidade. Há quem arrisque uma pose triunfal, erguendo a bicicleta aos céus, ou faça do cenário palco para um pedido de casamento, arrancando sorrisos nos olhos e lábios.
Mas a estrela nesse cenário é mesmo a exuberante Catedral de Santiago, construída a partir de 1075, uma mescla de estilos arquitetônicos onde está a cripta em que Santiago, discípulo de Jesus e padroeiro da Espanha, está sepultado. A visita é arrebatadora.
No século 9, quando começou a peregrinação para chegar ali e venerá-lo, a travessia era repleta de percalços e para muitos sinônimo de sacrifício.
Mil e duzentos anos depois, há uma ampla rede especializada para facilitar a vida do peregrino e serviços como o transporte de bagagem ao custo de 4 euros (R$21) via correio, além de várias possibilidades de trilhar o percurso: a pé, de bike, a cavalo, de trem ou de barco.
Até mesmo quem não é atleta de carteirinha tem vez e pode parcelar as etapas de acordo com o tempo disponível.
O primeiro itinerário cultural da Europa é um queridinho dos brasileiros, o décimo país com mais peregrinos a Santiago em 2019 e único representante da América Lati na no top 10. Naquele ano, mais de 347 mil pessoas peregrinaram até ali, a maioria a pé, por motivos religiosos e outros muitos.
No Xacobeu, ou Ano Jacobeu, quando o 25 de julho, dia de Santiago, cai em um domingo, o percurso ganha ares ainda mais especiais. Além de vários eventos, a porta santa da Catedral de Santiago se abre e os peregrinos podem pedir a indulgência plenária, o perdão de todos os pecados.
Com a pandemia, pela primeira vez o Xacobeu é celebrado em dois anos, 2021-2022, e vale aproveitar as temperaturas da primavera europeia.
O Caminho Francês, o mais famoso dos percursos e patrimônio da humanidade, oferece um passeio ao longo dos séculos que tem como marco inicial a Saint Jean Pied de Port, no sudoeste da França.
Partindo dali são 777 km trilhados em 33 dias – se quiser um atalho mais próximo a Madri, comece pela charmosa Burgos, o que diminui em 12 dias a jornada.
A partir dali se prepare para um trajeto em que o silêncio é rompido pelo cantar dos pássaros, os campos verdes seguem a perder de vista, e os plátanos com ramos ainda secos dão à paisagem o aspecto de quadros fora das telas.
Os restaurantes e bares se avizinham aos portais medievais da cidade milenar. Se o arco de Santa Maria, do século 16, já impressiona, ao atravessá-lo vem o suspiro de admiração diante da grandiosa Catedral de Santa Maria, um patrimônio mundial.
O templo gótico construído a partir de 1221 é uma galeria com obras do chão ao teto, como o zimbório da nave central sobre o túmulo do guerreiro El Cid, a escada dourada renascentista de Diego de Siloé, modelo da Ópera de Paris e a simpática figura do papa moscas, que de hora em hora bate o sino com a boca aberta.
A visitação é uma amostra do mergulho histórico, por monumentos e ruínas, que marcam o percurso pela região de Castela e Leão.
Para desacelerar após o subir e descer, o passeio de barco pelo Canal de Castilla, em Frómista, na província de Palência, oferece um respiro antes de conhecer a famosa Igreja de San Martín, do século 11.
Ao se perder pelas ruelas de Leão, é possível ouvir o rock de um pub se misturar às risadas dos estudantes que saem das escolas a poucos metros da Catedral de Santa María de Regla, templo do século 13.
Com uma das mais importantes coleções de vitrais do mundo, junto com a Catedral de Chartres, na França, não à toa ela é chamada de casa de luz. A sensação ali é de caminhar em direção ao infinito.
Leão tem a marca de Gaudí que, em 1892, projetou a Casa Botines, e o cálice de pedras preciosas da Infanta Dona Urraca, guardado no Museu de San Isidoro, uma das relíquias tidas como o Santo Graal.
Outra parada obrigatória é o monumental Castelo dos Templários, em Ponferrada, que teve a maior parte de suas imponentes paredes de pedra erguidas no século 15 e guarda ruínas dos tempos dos guerreiros católicos das Cruzadas.
Na mesma atmosfera histórica se avança para a Galícia. A música celta que chega das lojas de souvenires dá o tom ao vilarejo O Cebreiro, em Lugo, que conserva construções pré-românicas, uma delas um museu que ajuda a ter ideia de como era a vida no interior das cabanas de palha e pedra. A serra até ali está entre os trechos mais desafiadores para os peregrinos.
No povoado está a Igreja de Santa Maria, que guarda as relíquias do milagre em que o vinho e a hóstia consagrados pelo sacerdote incrédulo se transformaram em sangue e carne diante da fé de um camponês, no ano 1300.
Por terras galegas também passa o Caminho Português, trajeto de 571 km a partir de Lisboa. O ar espanhol se apresenta em forma de brisa aos que atravessam de Valença a Tui pela ponte internacional sobre as águas do rio Minho.
Caminhar por terras galegas dá a oportunidade de admirar os tons de azul do mar ao céu a partir de cenários únicos, como as ruínas do castro de Santa Trega, um povoado do século 1 a.C, a 341 metros de altitude, em Guarda, na província de Pontevedra.
Duas igrejas para conhecer no trajeto são o Santuário da Virgem Peregrina, templo dedicado aos viajantes em meio ao movimentado centro histórico de Pontevedra, e a igreja de Santiago, em Padrón, terra dos escritores Rosalía de Castro e Camilo José Cela.
Entre devotos, acredita-se que a pedra que pode ser vista em seu altar foi usada para amarrar a barca que transportou o corpo de Santiago.
Enquanto todos os caminhos terminam em Santiago de Compostela, um deles, o Caminho de Finisterra e Muxía, tem ali o seu início rumo à Corunha, um percurso de cerca de 90 km de pura beleza, a começar pela ponte Maceira, com seus arcos de pedra cercados por quedas d’água.
O Cabo de Finisterra era o que os romanos acreditavam ser o lugar mais ocidental da terra, o próprio fim do mundo. Não é, mas o clima místico na colina, marcada pela estátua da bota de bronze e pela pedra do km 0, é um convite para contemplar o pôr do sol ou fazer um piquenique.
A praça que antecede a passarela leva o nome do físico Stephen Hawking, que definiu o fim do mundo como “um belo lugar”. Ele estava certo.
A cerca de 30 km dali, a revoada de gaivotas salpica o céu acima de outro farol, o de Muxía, onde fica o Santuário da Nossa Senhora da Barca. Foi nesse ambiente que, segundo a tradição local, Santiago teve uma visão da Virgem, que lhe animou a seguir seu caminho. Segundo os peregrinos, é só assim que o caminho termina e o convite para voltar permanece.