Lauro de Freitas chega aos 54 anos de emancipação política – registrados no último 31 de julho – sem que a data tenha adquirido sentido. As cerimônias públicas de carácter cívico repetem-se como se um dia viessem a emprestar significado à emancipação, numa inversão absoluta entre causa e efeito.
Foi em 1962 que ganhou autonomia o distrito de Santo Amaro de Ipitanga – hoje com 408 anos de história – e então pertencente a Salvador. Nascia ali uma colcha de retalhos que juntou comunidades diversas e com diferentes culturas, necessidades e aspirações sob uma bandeira de inspiração nacionalista e religiosa que – paradoxalmente – vinha ao cenário negando a origem jesuíta no próprio nome do município.
Teria sido o engenheiro e vereador Paulo Moreira de Souza, de Salvador, falecido em março de 2003, aos 91 anos, quem primeiro articulou a emancipação de Santo Amaro de Ipitanga, apoiado pelas lideranças políticas locais. A proposta foi aprovada pela Câmara Municipal de Salvador porque a bancada do PSD, majoritária à época, achou de seu interesse homenagear um político nascido em Alagoinhas e falecido em um acidente aéreo em Bom Jesus da Lapa, doze anos antes, durante uma campanha eleitoral para o governo do Estado.
Tratava-se do engenheiro Lauro Farani Pedreira de Freitas, em homenagem a quem foi colocado um busto na pracinha em frente à estação de trem, no bairro da Calçada, em Salvador e cujo grande legado está no desenvolvimento das ferrovias – das quais aqui nunca se viu um metro de trilhos.
Não por acaso, a Lei Orgânica do município prevê a convocação de um plebiscito com o objetivo de repor o nome de Santo Amaro de Ipitanga, que seria de iniciativa da Câmara Municipal. As lideranças religiosas que se opõem ao topônimo original, por remeter ao catolicismo, são a principal razão pela qual o plebiscito nunca foi realizado.
Cinquenta e quatro anos depois, com a chegada do metrô ao Km 0 da Estrada do Coco, Lauro de Freitas finalmente terá seu primeiro par de trilhos para exibir. Uma centena de metros deles, talvez. O advento da ferrovia em terras de Santo Amaro de Ipitanga poderá vir a justificar o batismo político. Bem estruturado, qualquer discurso faz sentido.
É o caso do “Núcleo do Museu da Cidade” – a rigor uma sala no terminal turístico Mãe Mirinha, em Portão, com alguns painéis fotográficos, peças do Terno de Reis e duas esculturas que remetem à cultura afro-brasileira. Nem remotamente se pode considerar o espaço – aliás dedicado à cultura popular – inaugurado em 2013, como representativo da cidade ou de sua história, apesar do nome.
Mas o discurso político está presente desde o painel na entrada – onde se lê que a sala é “um presente de sensibilidade e compromisso” do prefeito – até a representação fotográfica dos folguedos típicos da cidade sem remeter à história propriamente dita. A necessária valorização da cultura afro-brasileira acaba por se confundir com a representação histórica – necessariamente mais abrangente.
Mesmo pobre de conteúdo, o Museu da Cidade, enquanto iniciativa, tem valor. Falta agregar material verdadeiramente histórico, por meio de curadoria profissional – e para isso há museólogos. Muitas famílias entre as mais antigas de Santo Amaro de Ipitanga e Portão certamente teriam com o que contribuir para essa realização.
Nem o mais elaborado repertório de argumentos consegue escamotear a falta de referências históricas – acadêmicas – sobre Santo Amaro de Ipitanga. A designação “Lauro de Freitas”, imposta em 1962, tornou-se lugar comum na consciência popular e tende a perpetuar-se. O topônimo é hoje um significante sem significado.
A construção desse vazio identitário, próprio dos subúrbios das grandes cidades brasileiras, teve início precisamente há 54 anos, naquele 31 de julho da emancipação. Em vez de promover a autonomia, como seria de supor, a alteração do status político trouxe mais alienação.
As parcas referências indicam que logo na sua primeira eleição, feita às pressas para cumprir prazos legais da emancipação, a cidade empossou um prefeito eleito pela diferença de votos das urnas de Valéria, então pertencente ao novo município, mas tradicionalmente uma outra comunidade, sem laços socioculturais com Santo Amaro de Ipitanga. Apesar de “emancipada”, a comunidade recebia uma liderança política estrangeira a si mesma.
O território original do município emancipado totalizava 210 km² e abrangia grande parte do que hoje é a região da Paralela. Toda essa extensão territorial foi integrada a Salvador até que o muro do aeroporto fosse o limite. Mesmo a praia de Ipitanga, que está na origem do topônimo histórico, em sua maior extensão passou a fazer parte da capital.
Os anos seguintes não trouxeram melhor sorte: Amarílio Tiago dos Santos, o filho da terra derrotado na primeira eleição, em 1962, seria eleito em 1966, mas governaria por dois anos apenas. Acabou cassado pela Câmara Municipal, em 1969, em plena ditadura militar. O advento do regime ditatorial, dois anos depois da emancipação, ajudaria a alienar a comunidade nativa na sua própria cidade – situação que se agravou ainda mais a partir de 1972, quando o município foi declarado “de interesse da segurança nacional” por decreto-lei amparado na constituição de 1967.
Os municípios de Simões Filho, Candeias e Camaçari foram igualmente enquadrados, passando a ter prefeitos nomeados e não eleitos, o que atrofiou a representatividade política local. Lauro de Freitas estava incluída por ser vizinha de uma base aérea da Aeronáutica. O aeroporto, originalmente pertencente a Santo Amaro de Ipitanga, já tinha sido recortado no mapa para se encaixar no território de Salvador.
Quando voltaram a ser realizadas as eleições diretas nas áreas de segurança nacional, a prefeitura foi ocupada, entre 1973 e 1985, por Ismael Ornelas Farias e Gerino de Souza Filho. O primeiro prefeito eleito depois da redemocratização foi Paulo Rosa Neto, que governou entre 1986 e 1988, sendo substituído por João Leão.
A retomada da vida política local trouxe uma mudança profunda no ritmo de desenvolvimento da cidade e João Leão influenciaria decisivamente a eleição dos três prefeitos seguintes, todos do seu grupo político: Otávio Pimentel, em 1993, Roberto Muniz, em 1997 e Marcelo Abreu, em 2001.
O desenvolvimento econômico dos últimos vinte anos trouxe para a cidade muita gente nova e mais preparada que não se integrou à população nativa, ajudando a criar bolsões de desigualdade. Há diferenças no nível de educação, no poder de compra e mesmo na cultura. Falta aos recémchegados uma identidade afetiva com o lugar. Para eles, Lauro de Freitas é uma extensão de Salvador e Vilas do Atlântico uma espécie de enclave da capital no município vizinho.
As sequelas da alteração forçada do referencial de Lauro de Freitas ficam claras no déficit de integração. Para a população de Itinga e Vilas do Atlântico, por exemplo, “Lauro de Freitas” designa somente o centro da cidade. Para as famílias mais tradicionais de Portão, o topônimo nada vale. Os mais antigos ainda dizem que vão “a Santo Amaro” – nome que aglutina as comunidades – quando precisam se deslocar ao Centro.
As raízes culturais cedem espaço ao interesse de mercado: os topônimos só se mantêm se forem marcas comerciais para o turismo, por exemplo. É precisamente essa a história da praia de Buraquinho, que em qualquer mapa vai de Ipitanga à foz do Joanes. Há pouco mais de 30 anos, por conveniência de marketing ligada à comercialização do novo loteamento, a maior parte da praia foi artificialmente rebatizada “Vilas do Atlântico”. Hoje, Buraquinho é um nome que designa apenas uma curta faixa de praia junto à foz do rio.
Cinquenta e quatro anos depois, apesar de estar para receber os seus primeiros metros de ferrovia, a cidade ainda não entrou nos trilhos. Por incrível que pareça, paredes meias com a capital, Lauro de Freitas ainda não tem sistema de esgotamento sanitário. O ordenamento urbano, apesar dos mais recentes e meritórios esforços da gestão pública, continua longe de ser resolvido. A qualidade de vida na cidade continua a cobrar medidas que possam ir além do asfaltamento de ruas.