A saga de Rosangela dos Santos Silva, a Professora Rosinha

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    Quando nos vem a lembrança da infância, sempre está presente pelo menos um professor(a) que foi marcante, seja pela exigência, com aquelas provas surpresa, ou até pela paciência e candura que é tão peculiar nessa classe. E por passar tantas horas dos dias com elas, acabamos que criando um vínculo afetivo, levamos presentes e mimos, pedimos abraços e até a chamamos de tia.
     
    Para os moradores do Jardim Tarumã, na Itinga, em Lauro de Freitas, essa imagem está muito bem representada pela Professora Rosinha (assim mesmo, com P maiúscula). Com mais de 30 anos trabalhando com educação, Rosângela dos Santos Silva, 47 anos, viu, através da necessidade, a porta da sala de aula abrir, e se transformar em um grande sonho, que hoje atende pelo nome de Colégio Roselândia, onde estudam diariamente 720 alunos, da Educação Infantil ao Ensino Médio e emprega 75 funcionários.
     
    A história da professora Rosinha, ou Rosa como também é conhecida, começa bem cedo. Ela é a mais velha de uma família de cinco irmãos. Seus pais, hoje aposentados, levaram uma vida muito humilde, no bairro de Itinga. Seu Marivaldo Silva foi padeiro e a mãe, Maria Angélica, conhecida como Cosminha, era doméstica. Ambos lutaram para garantir educação e cultura para os filhos. “Lembro de meu pai colocar o disco de vinil na vitrola, tocando Gilberto Gil, Caetano Veloso, Benito de Paula, Roberto Carlos, esse era o nosso final de semana. Meus pais, até então, não sabiam ler nem escrever, e sempre se preocuparam com a questão educacional, e todos os filhos estudaram pelo menos até o ensino médio. Sou a primeira com formação nível superior, por parte da família de mãe e de pai, e depois fui arrastando minhas irmãs e alguns primos”.
     
    Aprendeu as primeiras letras com a professora Clarisse, responsável por alfabetizar praticamente toda a comunidade do Jardim Tarumã. Estudou nas escolas públicas do bairro, na escola Cidade Nova, Alfredo Agostinho de Deus (Vilão) e Francisco Franco, até terminar o fundamental, e seguiu para o Bartolomeu, no Centro de Lauro de Freitas, para fazer Contábeis. “Eu queria mesmo era magistério, mas meu pai não queria filho professor, dizia que ganhava pouco”.
     
    Mas o destino tem as suas ironias, e para conseguir custear o transporte da Itinga até o Centro, seu Marivaldo pediu para um amigo, dono da escola Saionara (fechada há cerca de 20 anos), que empregasse suas duas filhas. E assim foi. Rosa começou na sala de aula com 14 anos, com a turma de educação infantil. Foram quatro anos, até que a escola começou a despedir os funcionários, e não demorou muito acabou fechando.
     
    “Eram tempos muito difíceis. Quando fomos desligadas da escola, não tínhamos dinheiro para pagar transporte até o Centro, então saíamos cortando o caminho, por dentro do mato e das fazendas, onde hoje é o Caji, até chegar na Estrada do Coco, atravessar e chegar na escola, que fica no final de linha”.
     
    Pouco tempo depois o pai ficou doente, foi afastado da empresa, passou meses em casa se tratando sem receber salário. Ficou sem qualquer renda para sustentar a família, de sete pessoas. A solução veio daquilo que ela já sabia fazer, e fazia bem: dar aulas. Em 1993, Rosa abriu uma banca, em casa, para dar aulas de reforço. Mal sabia ela que estava iniciando uma história de vida.
     
    1 QUADRO, 1 MIMEÓGRAFO E AS CARTEIRAS
    “Lembro até hoje os nomes dos primeiros alunos da banca: Camila, Alina, Vanessa, Marcos, Iuri, Marlene, Juliana e Marcelo”.
     
    O olhar de Rosa é de total alegria ao lembrar dos anos que dava reforço em casa. O espaço era improvisado, na cozinha, uma grande mesa com dois bancos, onde cabiam seis alunos de cada lado. Neste primeiro momento, não havia quadro, ela ensinava um a um no caderno. Mesmo assim os resultados apareceram, os pais gostaram tanto do desempenho dos filhos na ecola, que sugeriram a Rosa que transformasse a banca em uma escolinha.
     
    Ela gostou da ideia e resolveu seguir em frente. Mas o espaço da cozinha era pequeno, não comportava mais crianças. Os pais, sem titubear, cederam o próprio quarto – o único compartimento da casa que possuia janela (foto acima) –, para que ela fizesse a primeira sala de aula. “No quarto tinha apenas a cama e umas caixas e caixotes com roupas. Todos os dias pela manhã, bem cedo, eles desmontavam a cama, e levavam tudo para o quintal de casa. À noite, depois que todas as crianças iam embora, a cama era montada novamente. E assim se seguiu, por um ano inteiro”. 
     
    O primeiro quadro negro foi feito pelo pai: um retângulo na parede, que sequer tinha reboco, coberto com cimento verde. O giz eram pedaços de cal que ele trazia, quando retornava do trabalho, na padaria do Paes Mendonça, em Salvador.
     
    Apesar das dificuldades estava dando certo. Rosa conseguia ajudar na renda de casa e guardar um pouco de dinheiro, e então a família começou a investir. Com o valor da rescisão de seu pai, que foi desligado da empresa, e o dinheiro que ela conseguiu juntar das aulas, veio a primeira laje. “Tenho as impressões digitais da comunidade aqui na escola. Nunca paguei para bater nenhuma laje. Eu comprava o material, e os pais das crianças faziam o mutirão”.
     
    Aos poucos, no ritmo lento que o dinheiro permitia, a casa ia migrando para a parte de cima, e o espaço debaixo ia ficando exclusivamente para a escola, que no boca a boca, já tinha chegado ao conhecimento de toda a comunidade.
     
    Em 1995, Rosa já tinha a escola registrada, e as crianças, o primeiro uniforme. “Em 1996 comprei o primeiro mimeógrafo da escola. Lembro que foi na papelaria Atlas, ao lado do Elevador Lacerda, no Comércio: um amigo parcelou no cartão para mim. Antes eu fazia tudo na mão, com uma caneta preta. Vitor, que na época era meu namorado, conseguiu umas carteiras de madeira, pesadas, que a escola Marista, do Campo Grande, estava doando. Pensei: já somos uma escola! Tinha quadro, mimeógrafo e carteiras”.
     
    DESAFIOS PELO CAMINHO
    A cada ano que passava a escola se transformava mais um pouco e novos desafios surgiam. Rosa conseguiu separar totalmente os espaços, da escola e de casa, apesar de estarem no mesmo prédio, concluiu o curso de Contabilidade e ingressou no magistério, ali mesmo no Bartolomeu, Casou com Vitor, seu namorado de infância, que viria a ser professor também, e que tempos depois faria um ótimo trabalho junto ao município: dessa união nasceu Alice, que com 10 dias de nascida já estava acompanhando a mãe para a escola, que diariamente cumpria seu compromisso com seus alunos. 
     
    A partir dos anos 2000, com a reestruturação da educação no país e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), começou se exigir formação superior para os professores com atuação em sala de aula. Rosa partiu para esse novo desafio.
     
    A primeira tentativa, infelizmente, não deu certo. Ela, assim como tantas outras pessoas, caiu no golpe de uma instituição clandestina, perdeu dinheiro mas não a vontade de fazer o curso. “R$ 500,00. Lembro até hoje do valor da mensalidade na faculdade Unirb. Era muito dinheiro na época e a faculdade não aceitava Fies. Mas eu enfrentei e no segundo semestre de 2005 comecei o curso, a faculdade era no Orixás Center, próximo a Lapa, em Salvador. O primeiro semestre fiz no vespertino, mas só conseguia dar aulas pela manhã, então troquei para o noturno. Dava aula o dia todo, depois seguia para a faculdade. Minha filha ficava com o pai ou as avós. E assim foi até me formar, em 27 de setembro de 2008”.
     
    Mais tranquila com sua formação, Rosa conseguiu comprar um lote e construir uma casa para seus pais, garantindo para eles maior conforto e possibilitando mais uma ampliação da escola, que não parava de crescer.
     
    Os novos desafios viriam na vida pessoal: se separou do marido (mas o amor falou mais alto, vindo a reatar dois anos depois); passou alguns meses dormindo em colchonetes com a filha de seis anos, dentro da escola; foi morar com a irmã caçula e recém casada; comprou um lote e construiu sua casa; comprou um terreno para fazer um centro comercial, mas o coração bateu forte e o galpão se transformou em anexo da escola, com as turmas do Fundamental 2 e o Ensino Médio; e o maior dos desafios: o câncer.
     
    OLHAR PARA O OUTRO E TRANSFORMAR O TODO
    A primeira vez que o câncer chegou até Rosa foi em 2008, através de sua mãe: um câncer de mama. Anos mais tarde, em 2012, Vitor, na época com 39 anos, foi surpreendido por um tipo muito raro de câncer, nas glândulas parótidas, que geralmente acomete pessoas de pele clara e fumantes. Ele não era nem uma coisa e nem outra, mas aconteceu. “Os médicos deram a ele seis meses de vida. A família e os amigos foram muito presentes, fizeram escala para levar ele na quimioterapia, em Salvador. E ele lutou, ficou entre nós por mais três anos”.
     
    A terceira vez foi ano passado, nos seus exames de rotina. “Como minha mãe teve câncer, faço exames anualmente, sempre em julho. Com os resultados na mão, o médico pediu que eu falasse minha história. Falei de minha mãe, de Vitor, e ele disse que eu já sabia o que é um câncer, e isso era bom, pois dessa vez a luta era minha: câncer de mama, invasivo, se estendeu até a axila, precisei de quimioterapia e perdi 60% da minha mama esquerda”.
     
    Rosa nunca havia se afastado da escola e foi muito difícil convencê-la de que isso era necessário. Cinco dias após a cirurgia lá estava ela, de tipóia, trabalhando. Na primeira sessão de quimio, perdeu o cabelo, mas se não estivesse nauseada, colocava um lenço na cabeça e ia para a escola. Mas, com a imunidade baixa, Rosa precisou ser internada algumas vezes, se manter em repouso, o que ela não interpretou como doença, mas sim como férias.
     
    Mas os pais perceberam essa ausência, e estavam preocupados. No dia da reunião anual de encerramento do ano letivo, que acontece em novembro, Rosa foi para a escola, tirou o lenço da cabeça e explicou o que estava acontecendo. “Me senti tão abraçada pela comunidade, e isso foi transferido em forma de cuidado e atenção, dos pais e alunos, para com a escola. Os trabalhos sociais que já fazíamos, ganharam uma força nova, os meninos passaram a ir de braços abertos nas visitas, por exemplo, ao lar de idosos ou a instituições de combate ao câncer infantil. E algumas mães, que também estavam enfrentando a doença encontraram na escola uma rede de apoio, que nós chamamos de ‘Todas pelo Peito’. Hoje temos oito mães enfrentando juntas, sem se esconder. Falar de câncer era feio, mostrar que estava sem cabelo era feio; mas nós começamos a usar as redes sociais, postar fotos e percebemos que o olhar passou a ser mais humano, tanto que um aluno, Artur de oito anos, superou um câncer nos rins aqui na escola, junto com a sua turma, sem nenhum julgamento de espanto ou medo”.
     
    Não é fácil, mas de alguma forma isso tudo ajudou Rosa a perceber o papel que a escola construiu ao longo dos anos junto à comunidade. “Estudei em escola pública, mas na minha época a educação era diferente; e agradeço imensamente também a formação que tive de meus pais. Sinto muito orgulho, de junto com a minha irmã, ter alfabetizado a nossa mãe, que hoje sabe ler e escrever, assinar o próprio nome. Tudo isso foi importante na hora de pensar a metodologia da escola e o que oferecer aos alunos. Hoje temos em nosso quadro ao mesmo tempo o filho do gari e do vendedor de queijo, e o filho do médico e do promotor; temos cadeirante e autista; temos os filhos dos meus primeiros alunos da banca; e todos convivem juntos sem diferenças. A escola tem esse poder de unir as pessoas. Me emociono ao lembrar daquele primeiro quadro que meu pai fez na parede, do sacrifício que eles fizeram em me entregar o próprio quarto para que fosse a sala de aula, e hoje vejo que nada disso foi em vão. Entrei na educação por necessidade, mas permaneço nela até hoje por amor!”, conclui, visivelmente emocionada.

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