O médico Atul Gawande cita o romancista Philip Roth: “A velhice não é uma batalha; a velhice é um massacre.”
Autor de “Mortais”, recém-lançado no Brasil pela Objetiva, o cirurgião defende que o aumento da expectativa de vida promovido pela medicina tem um efeito colateral.
Provavelmente a maior parte de nós conseguirá avançar, despistando doenças pelo caminho, até uma situação de perda de autonomia e de dependência, fruto da inevitável decadência física e – infelizmente – mental.
Isso é inédito na história da humanidade. Estima-se que a expectativa de vida no Império Romano era de 28 anos. Até outro dia, nós simplesmente morríamos antes de começarmos a – não há outra palavra – incomodar.
Gawande conta várias histórias de famílias que tentaram cuidar dos seus velhos em casa. Um idoso tem problemas de audição, então sem querer eleva o volume da TV a níveis insuportáveis. Outro tem incontinência urinária, mas se recusa a usar fralda –porque sente que isso afeta sua dignidade, o que não deixa de ser compreensível.
Pode ser que ele não queira tomar seus medicamentos. Pode ser que não queira comer. Ele precisa ser acompanhado a várias visitas médicas e exames em horário comercial. Ele já não tem controle motor, está sempre perto de se acidentar. O banho vira um luta. Demanda atenção 24 horas. Com frequência, tudo isso ocorre ao mesmo tempo.
Surge então uma situação emocional muito desagradável. O filho se sente culpado por estar, nas palavras de Gawande, ressentido por ter se tornado “assistente/ motorista/secretário/cozinheiro/empregado”. Sabe que ama o idoso em questão, mas vê que essa rotina toda inviabiliza sua vida pessoal e profissional.
O idoso, do outro lado, percebe que está dando trabalho. Talvez enxergue a própria decadência física, fique deprimido com ela.
Para piorar a situação dos velhos, Gawande aponta que mudanças na sociedade reduziram os incentivos para os mais novos cuidarem deles.
Em primeiro lugar, a menor quantidade de filhos reduz a quantidade de braços disponíveis para se revezarem nos cuidados – pense que nunca houve tantos filhos únicos.
Mas, mais do que isso, há uma transição econômica. Em sociedades rurais do passado, o filho que se sacrificava para cuidar do pai poderia esperar a propriedade como recompensa. Paciência pragmática também é paciência.
“O desenvolvimento econômico global mudou dramaticamente as oportunidades para os jovens”, diz Gawande. Empregos estão em todo lugar, exigem mudança de cidade. Procuram-se promoções. Passar horas levando o pai ao médico é perder chances profissionais, em vez de garantir uma posição no testamento.
Uma solução é encaminhar o idoso para uma casa de repouso, o que representaria um alívio para ambas as partes. Mas elas também têm diversos problemas, diz o médico.
Passar os últimos dias em um asilo significa viver entre desconhecidos, justamente em uma fase da vida em que não estamos muito dispostos a novas aventuras.
Além disso, é difícil para o funcionário desses locais atender as particularidades de cada paciente. Exceto em locais muito sofisticados (e talvez caros), é inevitável certa padronização de alimentação, horários, atividades.
São rotinas anônimas, que retiram a individualidade de quem talvez um dia tenha sido proeminente, decidido. Certa teimosia ou rabugice seja talvez apenas uma última tentativa de expressar isso.
Mesmo médicos não gostam muito de lidar com idosos – poucos buscam a geriatria. “O velhinho é surdo. Não enxerga bem. Pode estar com a memória prejudicada. Ele não tem uma queixa principal tem 15 queixas. Como você vai lidar com todas elas? Você se sente sobrecarregado”, afirma um geriatra a Gawande.
Para piorar, certa solidão é comum nesses lugares. Escreve Drauzio Varella: “Se você só tem filhos homens, não tem mãe nem irmãs, reza para morrer antes de sua esposa. Caso contrário, meu amigo, é provável que seus últimos dias sejam passados com estranhos. Não me interprete mal, filho homem. Você irá visitá-los quase todos os dias, no almoço. Perguntará se estão bem, se as dores melhoraram, mas infelizmente precisará voltar para o escritório.”
Um tanto assustador.
MORTAIS Autor: Atul Gawande.
Editora Objetiva.