Contos, crônicas e histórias da freguesia de Santo Amaro de Ipitanga

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Capítulo 2: Dona Diluca, filha de João Expresso e a Igreja de Nossa Senhora do Bom Parto, em Portão
 
Era uma dessas tarde muito quentes de verão, quando cheguei à casa de Andrelina Rosa de Oliveira Barbosa, 83 anos, mais conhecida como Dona Diluca, no popular bairro de Portão. Com passos curtos, porém firmes, toda arrumada, ela veio ao nosso encontro, sem disfarçar sua visível timidez, pois já sabia o motivo de nossa visita: uma conversa descontraída sobre suas memórias, que resultaria em um vídeo, para o canal ‘Memórias de Santo Amaro de Ipitanga’, do Youtube, e um texto para a revista Vilas Magazine. “Sempre recebo a revista aqui em casa, trazida por amigos e parentes. Quando não chega, peço logo para alguém ir pegar uma na livraria do Vicente, aqui em Portão. Tenho as duas mais recentes, as dos anos anteriores precisei fazer uma limpeza, e tive que me desfazer”, conta.
FOTO: Dona Diluca, 83 anos. Uma vida de fé a Nossa Senhora do Bom Parto
 
Em uma folha de papel ela havia escrito algumas coisas para falar. “Filha de João Arcanjo de Oliveira e Rosa de Lima Santos, nascida aqui no bairro de Portão em 28 de agosto de 1935. Casada com José Alves Barbosa, hoje viúva, sou mãe de cinco filhas, seis netos e seis bisnetos. Católica, praticante”, lê lentamente.
 
Mas queríamos mais, e aos poucos ela foi contando de sua infância… “subir em pé de pau, correr picula, juntar de noite um grupo de meninos e meninas para contar história, coisas do interior que hoje em dia o povo não sabe o que é”; de como o bairro de Portão mudou… “ sempre morei aqui, era um coqueiral, muitas mangueiras, muito verde, e hoje quando olho aqui do quintal e vejo aquele hotel…(risos)”; ou do orgulho do pai, João Expresso, que não deixava um estudante sem ir para a escola… “se ele soubesse que algum motorista tivesse deixado alguém no ponto, era perigoso a pessoa perder o trabalho”.
 
Mas de todas as histórias uma chama mais atenção, principalmente pelo brilho presente no olhar dessa mulher, que ainda conserva delicados traços de beleza. Ela conta que em uma de suas viagens com o caminhão, João Expresso recebeu uma encomenda de uma vizinha, uma parteira de nome Ana. Ela lhe pediu que comprasse uma imagem de Nossa Senhora do Bom Parto. “Era no Taboão que se comprava as imagens de santo naquela época. Ele trouxe uma imagem, pequenininha, de Nossa Senhora. A parteira não gostou, disse que era feia, e devolveu a meu pai. Ele sempre foi muito católico, e ficou com a imagem da santa”, conta.
 
“Aqui nessa rua de casa tinha três armazéns, mas era uma miscelânea, até caixão de defunto vendia. Aqui quase defronte, tinha um terreno ainda vazio. Meu pai pediu ao dono do terreno, se poderia fazer uma gruta para colocar a imagem da santa. As pessoas naquela época eram muito amigas e deixaram que ele fizesse a gruta”, lembra.
 
FOTO ACIMA: Único registro da igreja de Nossa Senhora doBom Parto, em Portão.À esquerda, de paredesbrancas e portas cinzas e,logo à frente, o Cruzeiro
 
FOTO ESQUERDA: Registro do casamento, com José Alves Barbosa. “Foram 10 perús e três dias de festa. Um casamentão”
 
Os partos naquela época eram feitos por parteira, ou na maternidade Nita Costa, no Rio Vermelho. Mulheres prontas para ter seus filhos, saiam de várias localidades do litoral norte, para Salvador. A gruta era ao mesmo tempo ponto de descanso e, principalmente, orações à Nossa Senhora do Bom Parto. “As mulheres vinham de todos esses lados daqui, até de Arembepe, para ter filho. Quando não conseguiam caminhar, eram carregadas em redes. Uma coisa horrível, nunca gostei de ver aquilo. Sabendo da gruta, com a imagem de Nossa Senhora, paravam para fazer a reverência. Muitas mulheres nem chegavam na cidade, na maternidade. Era muito longe. Muitas tinham os filhos no caminho, outras infelizmente morriam. Outras ficavam na base aérea, que não era tão fechada como hoje, tinha hospital e as pessoas eram acolhidas também ali”, conta.
 
“Aqui em Portão tinha uma parteira ou parideira chamada Almerinda. As parideiras eram muito calmas, não tinham nervosismo. Ela acendia uma vela e fazia a marcação. Se a vela queimasse até aquele ponto e a criança não tivesse nascido, a parideira mandava procurar o “homem do anel” (o médico). De alguma forma ela sabia que não ia conseguir tirar a criança”.
 
Percebendo todo esse movimento em relação a imagem de Nossa Senhora do Bom Parto, João Expresso sugeriu então que fosse construída uma igreja. “Ele conversou com o dono da terra e fez a igreja. Naquela época o povo não se importava, hoje é que por qualquer pedacinho de terra as pessoas brigam.
 
Quando decidiu fazer a igreja providenciou de comprar outra imagem, maior, que está lá até hoje, há cerca de 100 anos. A igreja foi construída aos poucos, com ajuda da comunidade”.
 
A primeira igreja era branca com portas cinzas. Havia a porta da frente, e portas laterais, bem característico de igrejas de interior. Na frente, um cruzeiro. Conta-se que a devoção de João Expresso era tanta, que todos os dias ao sair para fazer suas rotas, parava em frente a igreja para fazer uma oração, encostando a testa no cruzeiro, gesto que com o tempo deixou marcas.
FOTO: Imagem de Nossa Senhora do Bom Parto comprada por João Expresso
 
Muito católica, como seu pai, muitos dos momentos felizes de sua vida aconteceram na Igreja do Bom Parto. E o casamento foi um desses. Dona Diluca não escondia o entusiasmo ao contar os detalhes. “Me casei com 22 anos. Meu marido era de Cruz das Almas, mas conheci aqui mesmo. Naquela época, o casamento civil era em Salvador, no Fórum Ruy Barbosa. Apesar do aluguel de carro ser algo caro, mas era uma tradição, e eu fui de carro até lá. Já o casamento religioso foi aqui mesmo na Igreja do Bom Parto. Meu vestido foi muito simples, até porque eu não gostava de muito enfeitado. Quem fez foi Darci Magalhães, a pessoa que me ensinou a costurar. As músicas eram lindas. Madalena Melo o nome da cantora, ela tinha um coral muito bonito. Só de peru, foram 10 (risos). Ao todo foram três dias de festa. Um casamentão”, lembra sorrindo.
 
Ficou viúva cedo, as 48 anos de idade, e encontrou amparo nas filhas, ainda adolescentes, na costura, e na religião, para superar a saudade. Assim como sua mãe, Dona Diluca assumiu os trabalhos da igreja, cuidando e conservando. Fazia reza de Santo Antônio, montava presépio. “Tinha que ir nas dunas buscar areia, galhos, plantas, para fazer a decoração. As castanhas viravam animais, às vezes pessoas. Não se comprava nada, era tudo feito pela comunidade”.
 
Dona Diluca foi a responsável pela igreja por 41 anos. Os registro sobre a inauguração, bem como fotos daquela época, se perderam. A igreja já passou por transformações, foi reformada, construído um muro, colocado portão. Hoje tem secretaria, mas quando é preciso lembrar de algo do passado, é à Dona Diluca que a comunidade recorre. “Tomei conta 41 anos da Igreja, hoje não tenho mais função assim, mas a chave da Igreja continua comigo (risos). Existe outra cópia, mas a minha ninguém nunca tomou”, conta orgulhosa.
 
NOTA DA REPÓRTER – Que delícia foi o primeiro capítulo, com a história de Dona Aidê. Só nós fez querer saber mais sobre a comunidade de Portão. Para o segundo, fomos falar com Dona Diluca, filha de João Expresso. Diferente de Aidê, Diluca é muito tímida, o que não diminuiu o cuidado ao nos receber, com deliciosos sucos para refrescar a tarde quente de verão. Suas memórias nos levaram até a Igreja Nossa Senhora do Bom Parto, e toda a religiosidade que ela envolve. Foi quase uma hora de conversa, e ao final, quando peguei a câmera para fotografá-la, ela logo retrucou, aos risos: “Mas o que essa menina ainda quer comigo?”. E lá estava toda sua timidez de novo.
 
NOTA DO EDITOR – A coluna “Memórias Ipitanguenses: contos, crônicas e histórias da freguesia de Santo Amaro de Ipitanga”, surge da parceria entre a revista Vilas Magazine e a Escola Municipal Ana Lúcia Magalhães, através da Secretaria Municipal de Educação. Participaram da produção deste capítulo: Andrelina Rosa de Oliveira Barbosa (Dona Diluna), Secretaria da Igreja Nossa Senhora do Bom Parto, Antonio Cláudio, Caíque Barbosa e a jornalista Thiara Reges.

 

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