As taxas de mortes e de internações por uso abusivo de bebidas alcoólicas no Brasil estão caindo entre os homens e aumentando entre as mulheres, revelam dados de um relatório divulgado dia 26 de julho pelo Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool).
Entre 2010 e 2021, houve alta de 7,5% de mortes e de 5% de hospitalizações totalmente atribuíveis ao álcool entre as mulheres, quando comparadas as taxas por 100 mil habitantes. Elas respondem por 23,6% do total de óbitos e por 29% das hospitalizações no país por esse motivo.
Já entre os homens, foi registrada queda de 8% das mortes e de 13% das internações. Na população como um todo, houve redução de 4,8% e 8,8%, respectivamente, após o pico de mortes no primeiro ano da pandemia de Covid-19.
Embora as mortes e internações femininas associadas ao álcool se concentrem acima dos 55 anos (71,2% e 44,2%, respectivamente), as taxas entre as mais jovens também impressionam.
Em 2021, crianças e adolescentes entre 0 e 17 anos responderam por 2,4% das mortes e por 11,3% das internações. Na faixa etária seguinte, dos 18 aos 34 anos, a participação foi de 7% e 17,8%, respectivamente. Entre 35 e 54 anos, por 19,2% e 26,6%.
No país como um todo, em 2021, foram computadas 69 mil mortes e 335 mil internações associadas ao álcool, de acordo com o relatório, que extraiu dados do Datasus.
Segundo o psiquiatra Arthur Guerra, presidente do Cisa e professor associado da USP, os dados do levantamento corroboram a preocupação com o aumento do consumo abusivo de álcool entre as mulheres nos últimos anos, apontado por vários estudos nacionais e internacionais.
Por consumo abusivo considera-se a ingestão de quatro ou mais doses, para mulheres, ou de cinco ou mais doses, para homens, em um mesmo dia.
Uma dose padrão corresponde a 350 ml de cerveja (5% de álcool), 150 ml de vinho (12% de álcool) ou 45 ml de destilado (como vodca, cachaça e tequila, com aproximadamente 40% de álcool). “Temos alertado para esse aumento entre as mulheres, mas, para todo mundo, parece que entra por um ouvido e sai pelo outro. Ninguém dá a menor bola. É urgente a elaboração de medidas voltadas às mulheres”, diz Guerra.
Para ele, essa alta do abuso de álcool entre as mulheres pode estar associada a vários fatores, entre os quais a pressão e a cobrança que sofrem no dia a dia. “Elas tem que trabalhar para fora, tomar conta da casa, dos filhos, estar bonita e magra. O álcool, muitas vezes, é usado para extravasar.”
Aos 45 anos, a funcionária pública Maria (nome fictício) contabiliza as perdas que sofreu por causa do alcoolismo: dois bons empregos, a guarda dos dois filhos, um casamento e um carro destruído em acidente.
O segundo marido, porém, a pegou pela mão e a convenceu a frequentar as reuniões do AA (Alcoólicos Anônimas). Está “limpa” há cinco anos e recuperou a guarda das crianças. “Eu já abusava do álcool na faculdade, tanto que larguei na metade do curso. Demorou muito para perceber que eu tinha perdido o controle, que estava doente e precisava de ajuda.”
A psiquiatra Ana Cecília Marques, do conselho consultivo da Abead (Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas), chama a atenção para a falta de políticas voltadas ao enfrentamento desse problema. “Infelizmente há zero de política pública voltada tanto à prevenção quanto ao tratamento de mulheres dependentes do álcool. Há muitas diferenças entre homens e mulheres que precisam ser levadas em conta.”
Nesse vácuo, segundo ela, as mulheres se tornaram mais vulneráveis às investidas da indústria do álcool. “Há toda uma pressão para que as mais jovens bebam cada vez mais. É a garrafinha decorada, colorida, é a bebida mais doce.”
O organismo feminino é mais suscetível aos efeitos nocivos das bebidas alcoólicas. “Ela tem a doença associada ao álcool mais cedo do que os homens. O homem vai ter cirrose com 55 anos, ela vai ter com 45.”
Marques explica que, por ter maior concentração de gordura corporal (que ajuda a absorver o álcool) e menor quantidade de água em circulação (que permite diluí-lo), a concentração alcoólica no sangue da mulher costuma ser maior mesmo que ela beba a mesma quantidade do homem.
Outra razão, segundo a médica, é que o corpo feminino possui uma quantidade menor de enzimas (desidrogenase) que metabolizam o álcool no estômago. Por esse motivo, o fígado terá mais dificuldade para digeri-lo e isso aumenta o risco do desenvolvimento de doenças hepáticas, como a cirrose, em menos tempo de uso da bebida.
A psiquiatra diz que outra diferença é a forma como o etanol afeta os liberadores dos hormônios femininos (neuroesteroides). “Há um impacto no sistema nervoso central. Em poucos anos de consumo excessivo, as mulheres tendem a apresentar lapsos de memória, desequilíbrio motor, problema hepáticos.”
A OMS (Organização Mundial da Saúde) lista mais de 200 doenças e lesões relacionadas ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas. Entre elas, a cirrose hepática, alguns tipos de câncer e doenças cardiovasculares, além de lesões resultantes de violência e acidentes de trânsito. “Depois dessas doenças graves relacionadas ao álcool, vem a mortalidade. Às vezes, a pessoa nem morre, mas fica totalmente incapacitada muito precocemente.”
Outra preocupação é com o início cada vez mais cedo do consumo do álcool. De acordo com dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense) 2019, as meninas são mais expostas a essa iniciação precoce: 36,8%, contra 32,3% entre os meninos.
Segundo o levantamento, cerca de 63,3% dos estudantes de escolas públicas e particulares entre 13 e 17 anos já tinham experimentado bebida alcoólica e mais de um terço deles (34,6%) provou pelo menos uma dose antes de completar 14 anos. “Muitos estão associando cigarros eletrônicos e bebida alcoólica. Tenho uma paciente de 16 anos que a mãe recolheu 12 vapes diferentes e uma garrafa de vodca bonitinha, belezinha, feita para mulher”, diz a psiquiatra Ana Marques.
Para ela, uma das estratégias de prevenção seria aumentar a idade mínima para consumo de álcool e a fiscalização. Também considera fundamental o envolvimento das famílias nesse processo.
O relatório do Cisa chama a atenção ainda para as disparidades regionais relacionadas ao uso de álcool. Em 16 estados brasileiros, a taxa está acima da média nacional de óbitos por 100 mil habitantes (32,4 mortes/100 mil hab.).
Em relação ao índice de hospitalizações, 11 estados e o Distrito Federal superaram a taxa nacional (157,7 internações/100 mil hab.). “É muito importante que os gestores públicos aprofundem essas análises por meio de estudos que investiguem as questões locais que possam estar influenciando o uso nocivo de álcool nas suas populações”, afirma Arthur Guerra.