De difícil acesso, Barra Grande, no Piauí, recebe ‘brisa cosmopolita’, mas se mantém deliciosamente pacata

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UMA BRISA PARA CADA UM
No pequeno litoral do Piauí, ventos do kitesurfe e praias desertas colocam Barra Grande no roteiro internacional do ecoturismo
 
Assim que as portas do avião se abrem, um bafo de ar quente invade o interior da aeronave, num choque térmico de arrepiar. Chegamos a Teresina, sob o calor escaldante que ultrapassa os 40°C, normal para os habitantes da capital do Piauí, a única da região Nordeste que fica longe da brisa litorânea.
 
De lá, serão cinco horas de carro até as proximidades da divisa com o Estado do Ceará, onde fica Barra Grande, praia recém-descoberta pelos amantes da natureza e do kitesurfe.
 
Pouco depois das 17h, começa um intenso movimento em direção ao areal: é a hora do pôr do sol, um espetáculo à beira-mar, numa singela vila de pescadores.
 
Turista pratica kitesurfe em Barra Grande, no Piauí
 
O vaivém das pipas coloridas no céu reflete-se nas águas do mar, cujas tonalidades oscilam entre o verde-esmeralda e o azul-turquesa. É como se a vivacidade da paisagem recebesse novos contornos graças ao leve toque da mão do homem.
 
De agosto a dezembro, o vento nordeste passa por toda a costa da região com muita intensidade, o que é ideal para impulsionar as pipas do kitesurfe. Com elas, o esportista ‘voa’ ao mesmo tempo em que desliza sobre a água com uma prancha presa aos pés.
 
Durante esse período do ano, a orla de Barra Grande fica apinhada de kitesurfistas, que vêm sobretudo da Europa (de países como Alemanha, França e Itália) para passar longos dias na água até que o sol se ponha.
 
Já apelidada de ‘meca do kitesurfe’, a vila tem seu nome definitivamente cravado no mapa-múndi do esporte. Além disso, está inserida na Rota das Emoções, traçado turístico que liga Fortaleza (CE) a São Luís (MA), passando pelo litoral oeste cearense, onde fica a praia de Jericoacoara, seguindo ainda pelo delta do Parnaíba e pelos Lençóis Maranhenses, roteiro, digamos, obrigatório para os adeptos do ecoturismo.
 
Ventos do kite
Nos últimos dez anos, Barra Grande vem assistindo a uma importante transformação, impulsionada especialmente pelos kitesurfistas.
 
Hoje, a vila de 1.800 moradores, situada a cerca de 400 quilômetros de Teresina, permanece pacata, protegida principalmente em razão da dificuldade de acesso ao local. Ao mesmo tempo, respira uma brisa cosmopolita, trazida por gente oriunda de diferentes partes do planeta.
 
Como acontece em tantos paraísos à beira-mar, muitos forasteiros chegam para relaxar, esquecer a vida, mas se apaixonam e acabam ficando.
 
Há quem goste de comparar Barra Grande à Jericoacoara de 20 anos atrás. Nas ruas de areia do povoado piauiense, além de pousadas, há bares, cafés e restaurantes de estilo ‘rústico-chique’, cujas portas se abrem somente após o pôr do sol.
 
Quase todas desertas e extensas, as praias convidam o visitante a trafegar descontraído, livre de pudores, sobre a areia fofa, deixando-se levar pelos encantos da paisagem. Na maré baixa, é possível caminhar por cerca de 3 quilômetros mar adentro e relaxar em piscinas naturais de águas mornas e cristalinas sentindo o vento na pele.
 
O Piauí tem o menor trecho do litoral brasileiro, com apenas 66 quilômetros de extensão – a Bahia é dona do maior pedaço, uma faixa de cerca de 1.000 quilômetros. É pequenino, sim, mas, como dizem orgulhosos os piauienses, de “uma beleza sem fim”. 
 
‘Veio um tal de gringo, que eu nem sei de onde é’
O rabisco de cores de kitesurfistas em Barra Grande vai cedendo espaço ao crepúsculo. Severo do Nascimento, 59, não arreda pé até o céu começar a cravejar-se de estrelas.
 
Percebe a presença de forasteiro e engata uma prosa, daquelas que prometem arrastar-se para longe de qualquer sinal de precipitação.
 
“Primeiro, veio o pessoal de São Paulo e um tal de gringo, que nem sei de onde é”, conta o pescador, nascido e criado em Barra Grande.
 
Com a chegada dos estrangeiros, explodiu aquele ciclo típico de lugares descobertos pelo turismo: espantam-se da beira-mar os nativos, os preços da terra disparam e abrem-se caminhos para empreendimentos voltados para atender aos visitantes.
 
“A gente só sabia o que era pesca e roça”, lembra Severo, fitando o mar no infinito. “As coisas não tinham valor por aqui. Vinte anos atrás, uma senhora, moradora dessas bandas, trocou o terreno dela de frente para o mar por um radinho de pilha.”
 
Hoje, comida, bebida, estadia, passeios, tudo tem valores tabelados pela nova lei de oferta e procura. O leque de opções é vasto, das mais simples às sofisticadas.
 
Um dos restaurantes mais moderninhos, com refeições por cerca de R$ 100 no total, é o La Cozinha, comandado pelo chef belga Hervé Witmeur, 31, outro forasteiro que ali se aquietou.
 
No espaço, onde se mesclam a cozinha francesa e a brasileira, são usados produtos orgânicos colhidos na horta da casa. Nas mesas ao redor, outro cardápio também é vasto: o de idiomas. Inglês, francês, alemão, holandês, italiano.
 
“Isso aqui virou outro mundo”, surpreende-se. “E imaginar que a luz elétrica só chegou a Barra Grande em 1990. Tomávamos banho nos lagos, pegávamos água na cacimba.”
 
Esse tal de kitesurfe, segundo conta o pescador, assusta os peixes, leva-os para longe, mas trouxe para esse pedacinho do Piauí coisas que “nem pensávamos que existissem”.
 
CAJUEIRO DA PRAIA PRESERVA TESOUROS NA TERRA E NO MAR
Praias desertas, clima de vila, babel de idiomas e muito esporte náutico. Assim é Barra Grande, que ainda não virou alvo do turismo de massa.
 
Trilha na chegada à praia de Itã, em Cajueiro da Praia
 
O refúgio pertence a Cajueiro da Praia, cidade de 7.000 habitantes. Atrás da igreja do vilarejo, uma estradinha de pedra de 8 quilômetros leva à cidade. Em grande parte do percurso, não há vivalma; fica só a sensação de ser parte de um cenário exuberante.
 
Motivo de orgulho da cidade, o cajueiro-rei, árvore que, segundo os moradores, chega a 8.810 metros quadrados, é patrimônio natural. Disputa o título de maior do mundo com o de Pirangi (RN).
 
Uma das praias centrais ostenta outra vegetação característica do Estado: um extenso carnaubal, que adorna as dunas do lado direito da baía. Da carnaúba, palmeira nativa do Nordeste, extrai-se a cera que, além do uso automotivo, entra na composição de cosméticos, remédios etc.
 
banhistas na praia de barra Grande, no Piauí
 
Vizinha das carnaúbas fica a base do Projeto Peixe-Boi Marinho. É na deserta praia de Itã, cujas águas lembram as do Caribe, que está a torre de observação do mamífero, a cerca de 3 km da costa.
 
O acesso à praia, sombreada por mangues, é feito por uma trilha desenhada no verde. Se será possível avistar o peixe-boi, é impossível prever, mas uma coisa é certa: sentar-se à sombra e olhar para o mar iluminado pelo sol a pino é outro momento gratificante.
 
ROLAM PEDRAS
As lentes dos óculos estão embaçadas, a visão embaralhada, a camisa lavada de suor. O sol quente anuncia: faz mais de 40°C. Até onde a vista alcança, a paisagem é composta de rochas.
 
Habituado ao calor constante, o guia, de olhos bem treinados, vê muito mais que a aspereza das pedras: “Olhe! Repare no bico de uma águia! Você se deu conta de que parece um casal se beijando?”.
 
Pedras lembram um pássaro alimentando um filhote, no parque de Sete Cidades
 
Especialista nesse jogo de procurar formas inusitadas, instigado por incomum curiosidade, Osiel de Araújo Monteiro ganhou o apelido de Curiólogo. Seus 39 anos de vida vêm sendo dedicados a explorar o parque nacional de Sete Cidades, área de transição entre a caatinga e o cerrado que se esparrama na região nordeste do Piauí.
 
O nome do parque faz referência aos sete grupos de formações rochosas, apelidados de ‘cidades’, esculpidas ao longo dos últimos 200 milhões de anos pela ação do vento, da chuva e do calor.
 
“As pedras falam. Como toda a natureza, elas só precisam de um intérprete atencioso para entendê-las”, diz.
 
Sem perceber, faz poesia. Conta que, quando criança, era ninado pela avó, que o fazia dormir ouvindo histórias dos sete reinos de pedra.
 
Orientado pelo olhar dele, o visitante entra na brincadeira e não demora a enxergar nas pedras esculturas de animais, figuras humanas e o que mais a imaginação permitir: estão lá o busto de dom Pedro 1º, um cavalo-marinho, um elefante, um cachorro, o mapa do Brasil e até mesmo uma boa quantidade de falos.
 
Outro atrativo especial do lugar são as pinturas rupestres (das quais cerca de 1.500 estão catalogadas). Datadas de mais de 6.000 anos, são estudadas por arqueólogos de vários países. Em uma delas, o controverso escritor suíço Erich von Däniken, autor de “Eram os Deuses Astronautas?”, teria enxergado a estrutura helicoidal do DNA.
 
De dezembro a julho, com as chuvas, aumenta o volume da queda da cachoeira do Riachão, formam-se as piscinas naturais, e a vegetação fica ainda mais verde.
 
De carro, o passeio dura quatro horas, um percurso de aproximadamente 15 quilômetros. Há quem encare a trilha a pé ou de bicicleta. Independentemente da escolha, a companhia de um guia é indispensável. Os passeios organizados por esses profissionais custam de R$ 40 a R$ 80. As excursões com dez integrantes, que duram de duas a três horas, têm preços que variam de R$ 5 a R$ 10 por pessoa, dependendo do roteiro.
 
Grita, que eu te escuto
Localizado a cerca de 200 quilômetros de Teresina, o parque de Sete Cidades foi criado em 1961, com o objetivo de preservar ecossistemas naturais de relevância ecológica e beleza cênica.
 
Além de pesquisas científicas e atividades de educação ambiental, a área também é destinada ao turismo ecológico e à recreação em contato com a natureza.
 
Ocupa uma área de 62 quilômetros quadrados (mais de 6.000 campos de futebol). Desse total, menos da metade é aberta à visitação pública. A maior parte da flora encontrada ali é típica do cerrado: espécies como murici, bacuri, pequi e pauterra. Nas manchas da caatinga, são avistados juazeiros, juremas, aroeiras e cactos, como o xique-xique e a coroa-de-frade.
 
O visitante pode ter a chance de assistir à revoada de bandos de papagaios. Suçuarana, veado-mateiro, tatu, mocó, paca, tamanduá-mirim, cutias e répteis também podem dar o ar da graça. É comum falcões tropicais e gaviões se manterem à espreita no caminho, bem lá no alto das rochas.
 
Três cidades servem de base para o turista: Piripiri, Brasileira e Piracuruca. Seja qual for a escolha, vale esticar até a simpática Pedro 2º, distante cerca de 40 quilômetros do parque.
 
Existe um mirante instalado no morro do Gritador, que, a 720 metros acima do nível do mar, possibilita uma vista panorâmica da vegetação nativa e dos imensos paredões de rocha. O morro recebeu esse nome por causa do eco produzido no local. Antigamente, segundo a lenda difundida pelos moradores, as comunidades que moravam em cima e embaixo do morro se comunicavam “na base do grito”.
 
A paisagem inspira Curiólogo: “Quem me dera, em vez de morrer, virar pedra. Havia de ser uma bem grande, como aquela”, disse o guia, apontando para a montanha.
 
COMO CHEGAR
A capital Teresina recebe vôos a partir de todas as capitais brasileiras. De Teresina, para chegar a Barra Grande, deve-se seguir até Parnaíba pela BR-343 e, de lá, pegar a BR-402, chamada de Rota Turística; no caminho entre Teresina e Parnaíba está o parque de Sete Cidades. Em Barra Grande não há postos de combustível ou caixas eletrônicos; para visitar o parque de Sete Cidades, a melhor estrutura está em Piripiri.

 

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