Para o babalorixá e pós doutor em Antropologia, Vilson Caetano (foto), o debate é amplo e precisa ser bem fundamentado, analisando não apenas as questões históricas, mas também as mudanças sociais, questões políticas e o racismo religioso. “O tema não é novo, mas os equívocos se repetem, ora através dos velhos jargões, ora pela forma como os conceitos de tradição e patrimônio são pensados. Supor a perda de uma tradição apenas a partir da incorporação de alguns ingredientes é no mínimo uma afirmação precipitada. As tradições não se formam da noite para o dia e vice-versa. Depois, há outros elementos implicados que devem ser considerados, como o fato de pensar a cultura para além da sua materialidade, desta maneira a comida e o comer estão para além dos ingredientes e dos arranjos culinários, embora não prescindam destes”, afirmou.
O antropólogo destaca que historicamente as tradições alimentares da sociedade foram se transformando e o próprio acarajé é um exemplo disso. O bolinho de feijão, da forma como conhecemos hoje e que está registrado entre o Ofício das Baianas no Livro de Saberes, de 2004, está bem longe daquele que foi noticiado pelo professor de grego Luís dos Santos Vilhena, no final do século 18.
“Estes de hoje já seriam uma nova versão surgida na década de 40, salvo engano, quando as nossas baianas deixaram de circular pelas ruas da cidade e ganharam pontos fixos onde ‘sentadas como verdadeiras rainhas em seus tronos’, parafraseando o professor Vivaldo da Costa Lima, passaram a receber seus fregueses”, completa Vilson.
Quanto ao bolinho ser de ‘Jesus’ ou de ‘Iansã’, o antropólogo defende que não é de nenhum dos dois. Na verdade, neste momento todo o debate sai da questão do alimento em si e entra em uma esfera meramente política. “O bolinho não é de ‘Jesus’, da mesma forma que não é verdade também que ‘todo acarajé é de Iansã’, embora tal frase possua um cunho afirmativo muito significativo. Qualquer pessoa pode vender acarajé, mas se comer é um ato político eu não como o acarajé de Jesus. E quando a ABAM reivindica e denuncia algumas mulheres que não querem ser chamadas de baianas, isso também é um ato político. Mas sobre isso eu sou fechado: se quer comercializar acarajé na rua, que se vista de baiana, que siga a determinação do Iphan. Insisto, o acará é patrimônio da humanidade”.
Cabe ainda acrescentar no debate a questão econômica. Para Vilson, apesar de existir um evidente racismo religioso, quando da negação do uso das roupas de baiana ou na tentativa de se adotar um ‘pai ou mãe’ para o bolinho, as pessoas não deixam de vender o acarajé pois a iguaria é muito apreciada, o acarajé representa hoje um mercado expressivo na cidade de Salvador “e quem garante o lucro é a freguesia, então continua com o bolinho e muda o nome”.
“O que muda no acarajé de Jesus? Não é a forma e nem a receita. Engana-se quem afirma que o acarajé das irmãs não são saborosos. Eles em nada devem a outros acarajés de quituteira famosas. Eles, todavia, vinculam outros valores simbólicos que começam com a negação de elementos identitários fundamentais para a manutenção de nossas memórias ancestrais negras africanas no Brasil. E neste caso temos que estar atentos, pois não se trata de intolerância religiosa, mas sim, de racismo religioso”, conclui o antropólogo.