Era uma quinta-feira, 21 de maio. Retornei para casa após mais uma tarde na tentativa frustrada de marcar meu parto, normal e humanizado, como meu esposo e eu escolhemos, em um dos hospitais de Salvador que oferecem essa possibilidade. Parecia mais uma noite tranquila, curtindo os carinhos de meu amado, meu grande companheiro em toda minha gestação, que foi meu parceiro nas tomadas de decisões. Mesmo antes de engravidar eu já tinha vontade de ter um parto normal, e lia muito, lia sobre a dor e as formas de amenizá-la, e então descobri o parto na água. Fiquei encantada.
Meu marido concordou com o parto normal, mas queria que fosse em um hospital, para nos resguardarmos de qualquer eventualidade. Na madrugada de sexta-feira, às 1h12, senti aquela ‘aguinha quentinha’. “Eita, amor, minha bolsa estourou”.
Foto: Angélica Sousa na companhia de sua doula Aline Calmon, nos preparativos para o parto normal e humanizado
A primeira iniciativa foi ligar para a minha doula (pronuncia-se du-la). Quando engravidei disse a meu marido: ‘quero uma doula’, e ele: ‘não se preocupe, te dou uma doula’. E assim Aline entrou em minha vida, como um presente.
Durante todo o processo ela me acompanhou, e sua intervenção foi fundamental. Aline me indicou uma equipe incrível para o parto, e sem que eu percebesse, deixou um plano ‘B’ todo orquestrado.
Tudo aconteceu de forma tão normal que em nenhum momento lembramos ou falamos de hospital. Não pareceu mais necessário. Ligamos para a equipe e aguardamos, enquanto eu revezava entre caminhadas dentro de casa e momentos sentada no sofá.
Meu esposo enchia a piscina inflável, tentando, na medida do possível, controlar a ansiedade.
Minha doula chegou, a equipe também, e às 9 horas eu já estava com cinco centímetros de dilatação.
Desse momento em diante, cada contração era uma alegria, eu sabia que quão mais fortes as contrações fossem, mais rápido teria minha filha nos braços. Me surpreendi ao perceber que meu companheiro estava ao meu lado. E que eu queria isso.
Antes do parto ficava com medo de afastá-lo de mim, por não querer que me visse sentindo dor. Mas foi justamente o contrário. Ele estar ao meu lado me passava segurança, e fez com que eu me sentisse amada.
Outro fator que passou sensação de amparo foi a intimidade e o cuidado da equipe. Um dos meus medos do hospital era se de repente o médico tivesse que me deixar para atender outra gestante. Eu tinha medo de me sentir só e a equipe que me acompanhou no parto fez com que me sentisse assistida. Às 16h20, do dia 22 de maio, Catarina nasceu, linda, com duas circulares no pescoço, viva e saudável.
Nossa! Foi um estado de êxtase: consegui, e quero viver essa experiência de novo”.
Humanização do Parto
A experiência de Angélica Sousa, 24 anos, relatada na primeira parte desta matéria, vem evoluindo nos últimos anos no Brasil. Em linhas gerais, o parto humanizado é aquele onde a mulher decide os detalhes do seu parto, desde a equipe à posição, deixando a natureza fazer o seu trabalho, com a menor intervenção médica possível.
Parte dessa evolução se deve ao maior acesso à informação por parte das gestantes, bem como as novas resoluções da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Desde julho obstetras são obrigados a elaborar o partograma, documento com o relato sobre tudo que aconteceu no parto, para que os planos de saúde liberem o pagamento das cirurgias cesáreas. Caso a decisão da cesárea seja da gestante, ela precisa assinar um termo de consentimento para garantir a cobertura do plano.
A iniciativa visa diminuir a taxa de cirurgias cesáreas no país, que na rede privada de saúde chega a 84,6% dos atendimentos. Na soma dos atendimentos da rede privada e da rede pública, a média é menor, chega a 57% dos procedimentos, muito acima da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) que é de 15%, e que coloca o Brasil como líder mundial de cesáreas.
Doula
A participação de doulas na vida das gestantes é também uma recomendação da OMS e do Ministério da Saúde, por proporcionar benefícios como a redução do tempo de trabalho de parto, queda nos índices de depressão pós-parto, maior consciência quanto a amamentação nas primeiras semanas, e, claro, redução nos números de cirurgias cesáreas.
Danielle Braz, 35 anos, doula há um ano, explica que uma doula não é uma parteira, mas sim “a mulher que acolhe e dá apoio à gestante durante toda a gravidez, o parto, e no puerpério (pós-parto), levando informações ao casal, à família, e a quem mais se interessar e precisar participar desse processo de humanização. A doula não faz o parto. A sua função é de apoio sentimental e psicológico”.
A função de doula é reconhecida pelo Ministério do Trabalho desde janeiro de 2013, mas ainda existe uma grande restrição, por parte de médicos obstetras, quanto ao papel desempenhado pelas doulas, e principalmente a presença delas no momento do parto.
“O médico aprende na faculdade que ele não pode criar vínculo, como uma forma de se proteger inclusive. A vida, o parto, é uma caixinha de surpresa, não temos como garantir que tudo vai dar certo, nem quando é uma cesárea e nem quando é normal. Mas, com anos de trabalho, aprendi a me colocar no lugar do médico e entender a pressão que ele sente quando tem duas vidas sob sua responsabilidade”, ressalta Aline Calmon, 37 anos, doula desde 2013, frisando a importância da profissional exercer o seu papel de companheira durante o parto, sem interferir nos procedimentos, papel reservados a enfermeira obstetra ou obstetriz.
Aline é a fundadora do Gestar Luz, um grupo gratuito de apoio à gestantes, puérperas e famílias, que atende no Espaço Terapêutico Luz, em Vilas do Atlântico. A iniciativa surgiu em 2014, quando Aline, que é nutricionista por formação, já havia se tornado uma doula. Com apoio de Andrea Leite, responsável pelo espaço, os encontros, rodas de gestantes e workshops foram acontecendo com maior regularidade e hoje a equipe é composta por três doulas e uma fotógrafa, que faz o registro dos partos.
“A mulher tem uma força feminina, mas que está se perdendo atualmente. Hoje existe busca ao conforto e a segurança do hospital e do médico, ‘vou entregar meu corpo para o médico, pois ele estudou anos para isso’. O que está precisando apenas é do estímulo para que as mulheres resgatem sua força interior, e isso só é possível por meio de informação”, conclui Aline.
Antecedendo a chegada de Catarina, aqui nos seus primeiros minutos de vida, com os pais
Preconceito e pouca informação
Apesar de natural e fisiológico, o conforto e popularização das cirurgias cesáreas afastou as mulheres do parto normal, chegando inclusive a gerar estranheza. Foi a falta de informação que levou Carla Grace Santos Melo, 28 anos, a fazer uma cirurgia cesárea no parto do seu primeiro filho.
Grace confessa que apesar ser profissional de saúde, se sentia autossuficiente e não buscou informações, seguindo apenas as orientações de sua médica. “Quando cheguei no hospital, estava com três centímetros de dilatação. A médica fez apenas o exame de toque, não fez ultrassom e me disse que estava com pouco liquído e que meu filho corria risco de morte. Aquela informação me apavorou e foi suficiente para que eu aceitasse a cesárea, que hoje, com a bagagem de informações que tenho, acredito que foi completamente desnecessária”.
Ao contrário do que muitas gestantes acreditam, a cirurgia cesárea não isenta a probabilidade de sentir dor. “Meu pós-parto foi traumático, são sete camadas de sua pele que são cortadas, e dói, dói muito. Mas a coisa toda é estranha desde os primeiros minutos após o neném nascer. Toda sua família sai para vê-lo, naquela vitrine, ele é a novidade, e você se sente complemente sozinha. Eu queria que meu filho ficasse comigo nos primeiros momentos do nascimento. Mas eu estava anestesiada, em todos os sentidos”, completa Grace.
Foto: Daniele Braz, Carla Grace, Aline Calmon e Angélica Sousa, com a pequena Catarina
Em Salvador cinco hospitais já atendem as demandas de parto humanizado: Mansão do Caminho, referência em humanização do parto, Maternidade Tsylla Balbino, Hospital Aliança, Hospital Português da Bahia e Maternidade de Referência Professor José Maria de Magalhães Neto. Em Lauro de Freitas tinha o Centro de Parto Normal de Lauro de Freitas, que abriu em 2012 e fechou um ano depois. Atualmente o município está sem assistência.
Agora, quatro anos depois, Grace está grávida do seu segundo filho, e com o acompanhamento de Aline e Daniele, já planeja seu parto, normal e humanizado. “Já decidi que se não houver necessidade da cesárea não preciso passar por tudo aquilo de novo. A procura por um obstetra que aceitasse fazer o parto normal foi complexa, não é fácil achar um médico que aceite a sua opção, e quando você encontra, o valor que cobram é superior ao valor da cesárea”, frisa Grace.
Com 31 semanas de gestação a expectativa está grande para a chegada de Noah. Grace encontrou uma obstetra para fazer o parto normal, e segue, com o marido, nos últimos preparativos. A data provável do parto é 11 de novembro.
Desde 2011, o governo federal tem incentivado partos humanizados através da Rede Cegonha, uma estratégia que visa estruturar e organizar a atenção à saúde materno-infantil. Enquanto o projeto não chega em toda a extensão territorial brasileira, as ações de grupos de apoio tornam-se fundamentais como fonte de informação. Além do Gestar Luz, Lauro de Freitas conta ainda com o Yeva.
Afinal, o que são doulas?
A palavra vem do grego e significa “mulher que serve”. Hoje serve para denominar as acompanhantes de parto que oferecem suporte afetivo, físico, emocional e de conhecimento para as mulheres. Esse suporte pode ser dado antes, durante e depois do parto.
Antigamente os partos eram realizados pelas parteiras que cuidavam da mulher em todos os aspectos. Hoje os partos são feitos em hospitais com uma equipe especializada: obstetras que têm a função de fazer o parto, pediatra para avaliar a saúde do bebê, a enfermeira e auxiliares que devem auxiliar os médicos para que nada falte e atender as outras mulheres também. E quem oferece assistência à mulher que está dando à luz?
Esse é o papel da doula: atender as necessidades da mulher. O ambiente hospitalar e as pessoas desconhecidas geram na parturiente medo, dor e ansiedade na hora do parto. A doula então oferece apoio afetivo e emocional para que ela se sinta segura e tranquila para um dos grandes momentos da sua vida: o nascimento do seu filho.
A doula antes do parto ajuda a mulher e o seu companheiro a refletirem e escolherem suas opções para o parto, explicando os diferentes tipos, as vantagens e desvantagens de cada um, as intervenções que podem ser realizadas e prepara a mulher para o momento do parto.
Durante o trabalho de parto, a doula serve como uma ponte entre os complicados termos médicos e a parturiente, sugerindo posições mais confortáveis para o trabalho de parto, mostra formas eficientes de respiração e propõe medidas naturais que podem aliviar as dores, como banhos, massagens e relaxamento.
A doula não substitui o acompanhante. Ela também dá suporte e orienta o acompanhante a oferecer apoio e conforto à mulher, mostrando como ser útil e não ficar perdido na assistência à parturiente, o que normalmente ocorre.
No parto cesárea, a doula também se faz importante, pois continua dando apoio, conforto e ajudando a mulher a relaxar durante a cirurgia. Depois do parto, ela oferece assistência e apoio quanto aos cuidados pós-parto, a amamentação e cuidados com o bebê.
Não é função da doula realizar qualquer procedimento médico, como fazer exames, aferir pressão ou administrar medicamentos e cuidar da saúde do bebê. Ela oferece segurança, tranquilidade e conhecimento para um parto seguro e não substitui qualquer profissional envolvido na assistência ao parto.
Pesquisas mostram que o parto em que uma doula está presente tende a ser mais rápido e necessitar de menos intervenções médicas. Algumas vantagens em se ter uma doula na hora do parto: Diminui o uso do fórceps em 40%, a incidência de infecção, a insegurança da mãe, ocasionando um maior autocontrole e menos dor; redução do risco da depressão pós-parto; sucesso na amamentação; maior autoestima da mamãe; maior satisfação com relação ao parto; alta mais rápida do bebê; poucas admissões nos berçários de cuidados especiais (UTI neonatal); diminui as taxas de cesárea em 50%; diminui a duração do trabalho de parto em 20%; diminui o uso da Ocitocina (indução de parto) em 40%; diminui os pedidos de anestesia em 60%; diminui o tempo de internação, possibilitando uma maior rotatividade de leitos; economia quanto ao uso de medicamentos (ocitocina, anestésicos, etc).
Fonte: Bruno Rodrigues, Guia do Bebê.