No prato e na mente: consciência alimentar pode transformar nosso relacionamento com a comida

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O que você comeu hoje?

A pergunta parece boba mas acredite, muitas pessoas vão precisar de uns segundinhos para se lembrar. É que no ritmo frenético imposto pelo mundo moderno e ultraconectado, comer se tornou algo mecânico: sentamos à mesa acompanhados do celular e da televisão, sem nos permitir sentir, sequer, o sabor do alimento.

E essa pressa sem fim fez aumentar também o consumo de fast food. Foi o que apontou a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, divulgada em agosto de 2020. Entre o levantamento de 2008/2009 e este último, referente a 2017/2018, houve um aumento de 10,5% para 17% no consumo de fast-food no Brasil.

Mas nem sempre foi assim.

Acredito que se pensarmos com carinho na nossa infância vamos lembrar que nossos pais e avós sempre alertavam que a hora da refeição era uma ‘hora sagrada’, preferencialmente sem interferência de qualquer tipo, a exemplo da televisão, e com toda a família sentada à mesa. Devidamente à postos, era só aguardar a refeição que vinha da cozinha antecedida por um aroma hipnotizante de comida boa, comida de verdade, feita com muito cuidado.

Para a psicóloga Bianca Meneses, especializada em Mindful Eating, não se sabe ao certo em qual momento perdemos a relação com o ato de se alimentar, mas se trata de um processo gradativo percebido nos últimos 25 anos, principalmente depois da chegada da internet e do telefone celular.

“O filósofo coreano Byung-Chul Han cunhou o termo ‘sociedade do cansaço’ para se referir a como temos vivido na modernidade: sempre correndo, tendo nosso valor associado ao desempenho e a quanto produzimos em menos tempo.

Não por acaso, pessoas com perfil ‘multitarefa’ são vistas como mais competentes, mas nosso cérebro não foi ‘formatado’ para fazer duas coisas ao mesmo tempo, inclusive, um estudo francês mostrou que temos três vezes mais chance de cometer erros se estivermos com a atenção dividida entre duas atividades. E ainda há quem ache que é normal dirigir, falar no celular e comer ao mesmo tempo… que perigo, não é mesmo?”

Resgatar essa conexão com o ato de se alimentar é uma das etapas para a construção de uma consciência alimentar, processo que, além de nos permitir apreciar melhor o alimento, nos ajuda a ouvir as necessidades do corpo e manter o equilíbrio.

Mindful eating: tudo está na nossa mente
Estabelecer uma relação consciente com a alimentação é tão importante que a psicóloga Bianca Meneses se especializou em Mindful Eating, um segmento dentro do mindfulness, uma técnica de atenção plena, consciência que surge quando levamos intencionalmente nossa atenção para o que estamos fazendo no momento presente, com uma atitude curiosa e não crítica. No Mindful Eating essa consciência é direcionada para alimentação.

“É comum que nossa mente divague durante a refeição. Quantas vezes estamos comendo e pensando no que vamos fazer a seguir, no que ocorreu logo antes ou em calorias, nos criticando ou julgando as escolhas que fizemos? Cultivar o Mindful Eating é, enquanto se come, notar a mente divagando e então (esse é o momento de atenção plena, quando nos damos conta de que não estamos no presente) trazê-la de novo, com gentileza, apenas para o ato de comer.

Jan Chozen Bays, uma importante autora dessa área, diz que ‘quando comer, apenas coma’. Mas é importante frisar que apesar de muito simples, não é tão fácil”, destaca Bianca.

De certa forma a pandemia tem contribuído para que mais pessoas repensem a sua relação com a alimentação. Um exemplo claro disso é a quantidade de hortas caseiras que nasceram no último ano. Entender o caminho do alimento, desde a semente até chegar à nossa mesa, é determinante no processo de construção da consciência alimentar.

“A consciência alimentar já pode ser cultivada desde a escolha do que comemos. Pensar de onde vem o que comemos nos conecta com essa extensa cadeia de seres que contribuíram para trazer o alimento à nossa mesa. Se você tentar contabilizar a quantidade de pessoas envolvidas, vai se surpreender! Pensar sobre esse aspecto nos faz ter mais respeito com essa enorme cadeia e com o que oferecemos ao nosso corpo e nos predispõe a fazer escolhas alimentares mais conscientes, desde buscar comprar de pequenos produtores locais e alimentos sem agrotóxicos, como se informar sobre o bem estar dos animais cujas carnes consumimos, por exemplo”.

Uma outra forma de se conectar com o alimento é cozinhar. No filme de animação Ratatouille, de 2007, o personagem central Remy, um rato, afirma que “todos nós sabemos cozinhar”, algo que muitas pessoas estão se permitindo também por conta da pandemia, e, segundo Bianca, quanto mais íntimos da cozinha, mas consciência teremos para fazer escolhas alimentares.

“Uma participante do último grupo de Mindful Eating que conduzi trouxe uma reflexão muito bonita comparando o pão industrializado com o pão que a mãe tinha feito especialmente para ela. Comer o pão feito pela mãe a nutria de diversas formas, não só fisiologicamente, porque comida também aproxima pessoas, carrega histórias e um tanto de sentimento. Além disso, quando cozinhamos conseguimos notar mais nitidamente o que está indo na panela. E ter essa consciência pode nos ajudar a fazer escolhas alimentares que honrem tanto nosso paladar quanto saúde física, nossa e da família. É importante pensarmos nisso, por exemplo, antes de fazer um pedido pelo delivery. A indústria alimentícia visa apenas o lucro e este não rima com qualidade e saúde”, reforça.

Dietas e a consciência alimentar
A construção de uma nova relação com a comida pode acontecer por diversas formas, e no caso de Maria de Lourdes da Cunha, coordenadora de Enfermagem, a motivação veio com o medo. “Recebi um encaminhamento para buscar um cirurgião gástrico, com objetivo de realizar a avaliação para uma cirurgia bariátrica, por estar apresentando diversos problemas de saúde como apneia do sono, esteatose grau 3 (gordura no fígado), elevação da pressão arterial e da glicemia. Só que eu tenho pessoas bem próximas que já realizaram a cirurgia e não tiveram bom resultado, então tive receio e o claro entendimento que, além de ser um procedimento de alto risco, ajudaria mas não resolveria minha obesidade; o trabalho ‘sujo’ era todo meu, era minha responsabilidade”, conta.

Foi a médica que recomendou a cirurgia bariátrica que falou com Lourdes sobre jejum intermitente, uma prática que surgiu em meados de 2007 e propõe intervalos de 12 até 36 horas sem comer nada. “Resolvi buscar mais informações e em novembro de 2019 adotei a estratégia do jejum intermitente com alimentação low carb e funcionou. Eu estava muito determinada, só comia o que era permitido na dieta naquele momento, pois sentia que não tinha outra saída; tenho uma filha de três anos e a única coisa que pensava é que poderia não estar viva para acompanhar o crescimento dela”.

A parte de aprender novas receitas, cozinhar de forma mais saudável, não foi difícil. Lourdes, como a maioria dos gordinhos, sempre teve muita afinidade com a cozinha. O maior desafio se concentrava, na verdade, na cabeça. Apesar de já ter iniciado o processo de emagrecimento pelo jejum intermitente e da dieta low carb (Lourdes eliminou 37Kg), o entendimento de que o alimento é nutrição e não uma válvula de escape ou merecimento, só aconteceu com ela há aproximadamente sete meses. “Um dia, já durante a pandemia, vi um bolo na mesa e comecei a comer sem pensar, sem sentir o sabor, sem apreciar o momento. Aí parei, respirei e encerrei aquele ciclo, entendendo que eu merecia estar bem, estar saudável”.

E com o tempo e o desenvolvimento de sua consciência alimentar, Lourdes já percebe que ela não precisa fazer restrições de alimentos: “Eu quero, mas estou de dieta e não posso comer!”. O que ela questiona sempre é se realmente o seu organismo está precisando de alimento, priorizando, por escolha, alimentos mais saudáveis. “ Hoje consigo me perguntar antes de comer algo que não se encaixa em meu plano, se é fome mesmo ou não; se eu comeria uma cenoura cozida no lugar do que estou com vontade, por exemplo. Caso comesse, seria fome mesmo, caso contrário, mudo o foco e esqueço”.

E as tentações?

“Não sinto mais tanta vontade de fast food hoje em dia. Desde quando comecei o processo, em 2019, comi duas vezes e na última nem consegui comer o lanche todo. Porque a mente da gente muda, olhar é outro. É saboroso? Sim, e muito, não serei hipócrita, mas o que ganho hoje com uma alimentação mais saudável é superior a um momento de prazer na boca”, conclui.

Comida e a consciência ambiental
Para algumas pessoas a consciência alimentar transcende a relação entre a comida e o corpo, alcançando a reflexão acerca dos impactos de nossas ações, por menores que pareçam ser, ao meio ambiente. Foi por alcançar este nível de entendimento que o engenheiro ambiental, atualmente no cargo de vereador eleito em Salvador, André Fraga, repensou sua relação com o alimento que consome diariamente.

“A partir do momento em que você vai se aprofundando no estudo dos impactos da ação humana sobre o planeta, você percebe que a alimentação tem um impacto muito grande. Tudo que a gente consome produz gases de efeito estufa, ou não. Tudo que a gente consome pressiona e promove o desmatamento, ou não. Tudo é uma questão de escolha. O aprofundamento desses estudos me fizeram repensar nos meus atos”, conta.

Assim como a maioria esmagadora da população brasileira, cerca de 96%, segundo pesquisa do Ibope Inteligência, conduzida em 2018, André tinha o hábito de consumir carne, sobretudo carne vermelha, regularmente. E foi justamente este o ponto que ele resolveu atacar primeiro.

“Tinha consciência que essa seria uma mudança cultural. A partir daí, já conhecendo o movimento Segunda Sem Carne, comecei a trabalhar com esse propósito um dia na semana, mas já tentando também influenciar outras pessoas. Hoje, digo que vivo uma rotina padrão ‘ao contrário’, onde boa parte da semana não consumo nada com proteína animal, reduzindo o consumo de carne para uma ou duas vezes na semana, com a perspectiva de eliminá-la por completo da minha alimentação”.

A campanha Segunda Sem Carne surgiu em 2003 nos Estados Unidos, e hoje já conta grupos e adeptos em mais de 40 países. No Brasil a campanha ganha força a partir de 2009 e tem por objetivo conscientizar as pessoas sobre os impactos que o uso de produtos de origem animal, para alimentação, tem sobre os animais, a sociedade, a saúde humana e o planeta.

Todo esse processo de adaptação à alimentação sem proteína animal, André fez questão de compartilhar nas suas redes sociais e com as pessoas mais próximas do seu contato. Foi assim que em 2019, ainda na condição de Secretário de Sustentabilidade, Inovação e Resiliência de Salvador, surgiu a ideia de agregar todos os colaboradores, abrindo a cozinha da própria secretaria para que chefes e cozinheiros profissionais mostrassem que comer sem carne não significa necessariamente viver de salada.

“A ideia de levar a Segunda Sem Carne para dentro da secretaria rolou porque, às segundas, comecei a levar a minha comida para o refeitório e os colaboradores, servidores da Secis, começaram a estranhar aquela refeição sem carne. Então comecei convidar pessoas que fazem comidas de maneira muito saborosa para mostrar para eles que existem várias alternativas, que não é só comer salada ou, sei lá, a soja texturizada, nada disso. Existe um mundo para além da carne”, frisa.

André cozinha desde muito jovem e conta que sempre se virou muito bem, mas com a nova rotina alimentar ele aprimorou não apenas os preparos, mas o cuidado desde a escolha do alimento. “ Muda a rotina completamente, na hora da compra, na hora do preparo, na hora de comer, na hora de descartar, eventualmente, o que não é aproveitado ou, principalmente, de aproveitar o máximo dos alimentos. Um terço dos alimentos produzidos no mundo, por exemplo, é desperdiçado. Como é que a gente reduz isso? Como é que podemos eliminar esse desperdício? Aproveitando o máximo dos alimentos. Isso faz toda a diferença. Na hora de comprar os alimentos, também optar por produtos locais, por produtos de origem agroecológica. Tudo isso muda completamente a nossa lógica e a nossa abordagem sobre alimentação”.

Sempre tem um vilão
Mas, definitivamente não é fácil. Como diz André Fraga: é cultural. Crescemos comendo proteína animal, sobretudo carne vermelha; inventamos desculpas, comemos por ansiedade ou por compensação. Quem nunca se achou no direito de tomar sozinho um pote de sorvete, uma garrafa de vinho ou comer uma pizza, porque perdeu o emprego, foi traída pelo crush ou porque não pode sair de casa por conta da pandemia? E escolher um alimento mais saudável, que às vezes precisa de um longo tempo de preparo, com tanta oferta de fast food disponível, parece até absurdo: porque perder tanto tempo, sujar panelas, se é só fazer uma ligação?

Para Bianca, não é possível definir o grande vilão quando o assunto é a alimentação, mas dois pontos ganham destaque. O primeiro é a cultura das dietas, que impõem o que as pessoas podem ou não comer, muitas vezes tirando o prazer do momento de se alimentar. “Veja, o problema não é querer emagrecer, mas o que as pessoas têm se submetido para isso. Medicações e cirurgias estéticas desnecessárias e, mais cotidianamente, dietas cada vez mais restritivas. Essas últimas nos desconectam do alimento pois quando um terceiro escolhe quando e quanto vamos comer acabamos deixando de usar os sinais de fome, saciedade e satisfação para decidir a hora de começar e de parar de comer. Paramos de ouvir esses sinais, tal como fazemos naturalmente na hora de ir ao banheiro fazer xixi, por exemplo. É aí que entra a consciência alimentar. Cultivando-a, podemos reaprender a ouvir nosso corpo e resgatar a confiança no mesmo para que possamos ser protagonistas da nossa alimentação”.

Outro ponto é a indústria de fast food: acessível financeiramente, ao alcance de um clique no celular, e, vamos combinar, muito atraente à maioria dos paladares. “ Temos aí uma indústria bilionária que ultra processa os alimentos para deixá-los mais palatáveis, carregando no sal e no açúcar ou usando substâncias químicas para realçar o sabor. Para completar, abusa de fotos que aguçam ainda mais nosso desejo por esses produtos (já existe um ramo na fotografia chamado “porn food”) e ainda os vende por preços baixos, muitas vezes mais acessíveis que os não processados. Sem falar nos aplicativos como ifood, que deixam esses alimentos a um botão de distância. Veja o paradoxo: nunca aspiramos tanto ser magros e nunca na história da humanidade houve tanta oferta de alimentos”.

Para driblar esses e outro violões da alimentação, Bianca dá algumas dicas que podem ser incorporadas na rotina diária, como evitar distrações na hora da refeição, a exemplo da TV ou do celular; repousar os talheres enquanto mastiga, fazer algumas respirações mais profundas antes de começar a comer e mastigar completamente o alimento, aproveitando todo o prazer que ele oferece. “A dica principal é: quando estiver comendo, apenas coma. Tente notar as cores, o aroma, até mesmo o barulho do que está comendo! Perceba como o sabor vai esvanecendo e como as primeiras garfadas são mais saborosas que as últimas. Faça isso tudo com abertura e curiosidade, aproveitando a oportunidade de se conectar com seu corpo e sem deixar o prazer de fora. Bon apettit!”, conclui.
 

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