A família que redescobriu o tempo

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Toda manhã o ritual na família era idêntico. Mal despertavam o primeiro ato era acessar o celular para abrir o zap. Iam para o café da manhã ouvindo e enviando mensagens. Mal se cumprimentavam.

Em realidade as saudações aos distantes pelas mídias eletrônicas eram constantes e efusivas enquanto que aos presentes eram praticamente inexistentes. Os que ficavam em casa, cada um ia para sua torre, ops, quarto e de lá continuavam teclando assim como os que iam para a mesa.

O isolamento de cada um com sua própria TV e seu mundo digital de zap, Instagram, Facebook, Twiter, Tik Tok e outras mídias se tornaram rotina. A impressão é que ao corpo humano foi adicionado mais um membro: o smartphone.

A frequência de uso do equipamento era tão incorporado que mesmo estando na mesma casa, enviavam mensagens uns aos outros pelo zap. Alguns dormiam com o celular caindo das mãos, e não poucas vezes entraram no chuveiro com ele ligado. Há relatos de que até no intercurso sexual cada parceiro segurava o seu cel.

Com o tempo o diálogo olho no olho foi rareando até desaparecer.

Em toda família o sentimento era uniforme: a passagem do tempo já não era a mesma. Algum mecanismo extraordinário teria alterado a rotação da Terra e acelerado a passagem dos dias.

Tudo começou a transcorrer velozmente. “Já estamos em janeiro?”. “É seu aniversário de novo? Não acredito, parece que foi ontem”. “Meus Deus, estou fazendo 18 anos e parece que fiz 15 ontem! O que está acontecendo com o tempo”?

De repente chegou a pandemia da Covid-19 que transformou o mundo em pandemônio. As atividades coletivas são proibidas com suspensão de todas as atividades comercias presenciais, clubes, escolas, campeonatos esportivos e tudo o mais. O mundo entra em pânico, com medo, angústia e em quarentena.

O patriarca convoca a família e declara que a partir daquele fim de semana todos mudariam para a fazenda da família no interior do Estado.

Foi uma gritaria só, com veementes protestos dos jovens.

“Mas pai, lá não tem wi-fi como vamos viver sem? Como viver sem zap, séries das streaming? Prefiro morrer…”

O patriarca foi inflexível. “Não temos opção. A empresa está fechada por tempo indeterminado, estamos sem receitas e muitas contas para pagar. Indo para a fazenda reduziremos os custos e estando por lá poderemos ver como torná-la produtiva e gerar renda”.

A reação dos filhos foi uníssona: “Não vou!”.

Ok. Entreguem-me os celulares e os cartões de crédito. Maria – a empregada – irá comigo e a mãe de vocês.

“Mas pai!”…

“Não tem choro nem vela. Ou vão ou se virem sozinhos. Vamos sair às 6h da manhã”.

Foram todos.

Não parecia uma viagem, mas um cortejo fúnebre. A viagem transcorreu com semblantes amarrados e silêncio sepulcral. Quem parecia estar curtindo era o patriarca com irônico sorriso na face.

Os primeiros dias foram como se a família estivesse em luto. Poucas palavras eram trocadas entre si e o pai começou a ficar preocupado com a família. Os filhos e a mãe começaram a dar sinais de síndrome de abstinência e só faltava “delirium tremens” pelo jejum de aparelhos digitais.

Para passar o tempo o pai estabelece um programa de trabalho consoante com a “aptidão” de cada um. Para a esposa, que além de coordenar os empregados da casa, pediu para mudar as cores dos ambientes; a filha, que gostava de animais incumbiu de supervisionar as ovelhas e bezerros recém nascidos; ao filho, ver as pastagens e o extenso plantio de frutas cítricas.

O que no início era uma atividade para ocupar o tempo pela ausência dos equipamentos digitais foi se tornando uma atividade absorvente que preenchia o dia com atividades físicas laborais e a noite propiciava sono precoce e relaxante. Nunca haviam dormido tão cedo e tão bem.

A família redescobre antigas afinidades que estavam adormecidas sob espessa camada de bites, zap, streaming e mídias eletrônicas. A adolescente relembra o apreço pelos animais da fazenda, cuidava com extremo zelo das ovelhas recém nascidas, como autêntica genitora. Seu irmão descobre o prazer das cavalgadas matinais pelas veredas da fazenda e apreciar o espetáculo de ver brotar do útero da terra as frutas que até então brotava da geladeira. Os pais esquecem do zap, absorvidos com as demandas do dia a dia.

A família começa a ver a natureza em seu esplendor. A aurora e o pôr do sol passaram a ser espetáculos diariamente observados. O tempo passou a ser aferido pela posição do sol. As noites passaram a ser contadas de acordo com a lua da semana. Os pássaros eram um espetáculo a parte, com seu colorido e sinfonia. Os animais da fazenda tinham sua própria orquestra. Os cachorros, que no início ficavam presos, após a soltura se integram ao ambiente como se neles tivessem nascidos, para sufoco de algumas aves.

E o dia passa a ser vivido hora a hora, como sempre fora até recente passado. A sensação de vivenciar o tempo passa a ser intensa. A sensação pré-pandemia de que o tempo voava não havia mais. O sentimento de que os nove meses transcorridos eram surpreendentemente nove meses.

O casal, já no outono da vida, antes da quarentena estava ansioso e sentia-se angustiado pela passagem rápida dos dias e pela idade, entendia que o fim estava próximo e não estava vivenciando a vida pela fugacidade da passagem do tempo. Na fazenda vivenciavam o dia em sua plenitude. Convocam uma reunião familiar e comunicam aos filhos que doravante passarão a viver definitivamente na fazenda.

Para surpresa de ambos, os filhos aplaudem a decisão e declaram que também desejam a mesma coisa. Voltarão para a cidade para terminar os estudos e prestarem vestibular – ela, para veterinária, ele, para agronomia. Após se formarem pretendem se estabelecer na fazenda.

E o tempo, senhor da razão, indiferente aos desígnios humanos, continua imutável desde os primórdios da mãe Terra, alternando dia e noite, aurora e crepúsculo, lua nova e lua cheia, sol e chuva, em inexorável jornada ao infinito.

 

Cicero Sena é advogado, empresário e escritor, membro da academia de Letras de Porto Seguro

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