Exemplar da bicicleta do barão Karl von Drais exposta no Kurpfälzisches Museum em Heidelberg, na Alemanha: sem pedal.
Cada vez mais cobiçada, a bicicleta comemora este ano o seu bicentenário. Mas a idade só lhe fez bem. A primeira bicicleta foi posta de pé na Alemanha, em 1817, pelo barão Karl von Drais, com base no projeto do “celerífero” – basicamente duas rodas interligadas por uma viga de madeira. A bicicleta do barão ainda não tinha pedais nem corrente, mas já contava com sistema de direção e de frenagem – e daí ser considerada a precursora de uma longa linhagem de “magrelas”.
O barão tornou-se também o primeiro ciclista de estrada, cumprindo cerca de 40 Km, na França, em 1818, impulsionando a invenção apenas com os próprios pés. O pessoal que hoje faz esse tipo de percurso em duas rodas conta com modelos sofisticados que podem custar o mesmo que uma moto, mas são entregues sem o motor. Uma bicicleta de boa qualidade, em alumínio, pode não custar tanto como os modelos especializados, mas alcançam os R$ 3 mil com facilidade.
Alexandre Abrahão, 48 anos, faz hoje os mesmos 40 Km do barão em duas horas, com o “grupo de pedal” de que participa há quatro anos em Lauro de Freitas. Membro da comissão organizadora, ele já pedala há 17 anos. O grupo foi idealizado por Jairo Martins, atleta e lojista do setor.

Só em Salvador e região metropolitana há dezenas de “grupos de pedal”. “Em qualquer cidade que você vá, encontra um grupo”, atesta Claudinei Potapczuk, 58 anos – membro do mesmo “pedal”. Basta procurar uma loja de bicicletas para entrar em contato com as organizações. “É mais seguro e mais divertido”, atesta. A motivação inicial foi cuidar dos joelhos. O ciclismo rende preparo físico sem impacto.
Potapczuk, que começou a pedalar em grupo há três anos, coordena o time “light”, fazendo percursos menores e puxando menos na velocidade, que não passa dos 20 Km/h para aproveitar mais a paisagem e o lazer. Há também o nível médio (de 20 Km/h a 28 Km/h), coordenado por Abrahão e Jairo Martins, que dá nome ao pedal. Já o “expert” chega a pedalar a 40 Km/h.
O grupo sai da loja New Atlântico Bike, na av. Luiz Tarquínio, todas as terças e quintas-feiras às 20h. Às terças saem os grupos light e médio. No final de junho, eles cumpriram 28 Km e 35 Km, respectivamente, seguindo pela orla até o Abaeté, em Itapoã. Há também roteiros especiais e de fim de semana. No feriado de 15 de junho, por exemplo, eles foram até Arembepe.
Alexandre Abrahão (esq) com o grupo durantedescanso do pedalnuma trilha
O “Jairo Martins Pedal Group”, de que participam Abrahão e Potapczuk reúne hoje cerca de 150 pessoas, mas varia muito o número de ciclistas que efetivamente participam dos passeios. A turma também organiza atividades sociais e de beneficência para ajudar as comunidades que normalmente atravessam nos percursos que cumprem.
Para a maioria das pessoas, contudo, a bicicleta é mais do que um instrumento de esporte e lazer. Muita gente usa as duas rodas como principal meio de transporte, mesmo em cidades como Lauro de Freitas, onde pedalar nas ruas é desafiar a sorte. A ausência de ciclovias expõe os ciclistas a riscos permanentes em confronto com motoristas que vêm a via pública como território exclusivo dos carros. A prefeitura vem prometendo implantar ciclovias na cidade, mas não foram ainda revelados os dados concretos desse plano.
A bicicleta como meio de transporte é uma ideia que motiva a organização não governamental (ONG) Rodas da Paz, de Brasília (DF), empenhada em garantir espaço para a bicicleta nas ruas. No ano passado, em parceria com a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e com o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), a ONG distribuiu 34 bicicletas usadas e recondicionadas a um grupo de refugiados.
Luiz Godinho, porta-voz da Acnur, destacou os benefícios sociais do uso da bicicleta como “fator fundamental de mobilidade, que ajuda também na integração social das pessoas”.
Grupo reunido para o roteiro local em noites de terça-feira: mais seguro e divertido.
CRESCIMENTO
Em Lauro de Freitas, onde os motoristas ainda não foram convencidos sequer a respeitar a faixa de pedestres, o respeito ao ciclista permanece um objetivo remoto. A implantação de ciclovias – e não apenas de ciclofaixas – desempenha papel fundamental na mudança de comportamento.
O Código de Trânsito Brasileiro estabelece que “os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres”. Na prática, contudo, os motoristas locais frequentemente travam uma guerra destinada a garantir prioridade absoluta para si mesmos em qualquer situação. Os outros que se cuidem. Nesse cenário, os ciclistas vivem sustos constantes.

Apesar de tudo, há cada vez mais ciclistas nas ruas brasileiras. A indústria do setor não escapou à crise econômica que abala o país desde 2014, registrando uma queda de 11,5% na produção de bicicletas em 2016, em relação ao ano anterior. Mesmo assim, foram produzidas 670 mil unidades, segundo dados da Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo). O setor projeta um crescimento de 19% em 2017, recuperando o terreno perdido. (
Foto: Claudinei Potapczuk (centro) atravessa rio com
amigos e as bicicletas durante percurso de pedal)
Já a exportação de bicicletas aumentou quase 28% no ano passado – com importações em queda de 44,4%. Ainda assim, o brasileiro comprou mais de 135 mil bicicletas estrangeiras no ano passado. Os três principais fornecedores para o mercado brasileiro em 2016 foram a China (115.841 unidades), Taiwan (11.013 unidades) e Portugal, com 3.918 bicicletas.
No pequeno país europeu a bicicleta vive um momento de forte expansão, com a produção alcançando mais de 1,5 milhão de unidades, mais que o dobro da indústria brasileira – refletindo um crescimento de mais de 30% nos últimos anos. As bicicletas mais vendidas por lá custam entre R$ 1000 em média – custo similar aos modelos brasileiros, mas também é possível encontrar produtos que chegam a valer R$ 37 mil.
BICICLETA BRASIL
Ciclovia no Rio de Janeiro: há promessa de implantação em Lauro de Freitas
No Brasil o uso da bicicleta ainda precisa de estímulos. Um deles pode vir do Congresso Nacional, onde a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou no mês passado um projeto de lei que cria o Programa Bicicleta Brasil, a ser implantado em municípios com mais de 20 mil habitantes. De autoria do deputado Jaime Martins (PSD-MG), o texto deve seguir para apreciação do Senado.
O “Bicicleta Brasil” seria financiado por 15% do montante arrecadado com multas de trânsito. O objetivo é promover a integração das bicicletas ao sistema de transporte público coletivo, apoiar estados e municípios na construção de bicicletários em terminais do sistema de transporte público coletivo e na construção de ciclovias e ciclofaixas, além da instalação de banheiros públicos e bebedouros em locais estratégicos para ciclistas. O programa deve também promover campanhas de divulgação dos benefícios do uso da bicicleta.
Essas iniciativas também poderão ser financiadas com recursos da Contribuição sobre Intervenção no Domínio Econômico (Cide-combustíveis), por meio de alteração na lei que fixa os critérios desse tributo e no Código de Trânsito Brasileiro. A execução do programa caberia aos setores público e privado ligados ao trânsito e à mobilidade urbana.
EXEMPLO DE FORA
Em países que priorizam seus cidadãos, o meio ambiente e a qualidade de vida, a bicicleta faz parte do cotidiano. A Dinamarca deu uma verdadeira aula a respeito disso no ano passado, durante os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, exibindo modelos especiais para crianças do jardim de infância, para fazer compras em supermercados, bicicletas-táxi para conduzir idosos de asilos em passeios pela cidade e até bicicletas que produzem energia para carregar baterias de telefones celulares.
A variedade foi exposta na Casa da Dinamarca na Rio 2016. A ideia do pavilhão era mostrar que a bicicleta pode substituir os carros, com vantagens não só para o meio ambiente, mas para a melhora da qualidade de vida das pessoas.
A BICICLETA NA DINAMARCA: 90% da população prefere esse meio de transporte. Só em Copenhague, por exemplo, metade dos moradores usa a bicicleta para ir trabalhar
O relações-públicas da Casa da Dinamarca, Brunno Fischer, contou que, ao contrário do que ocorre no Brasil, na Dinamarca o uso da bicicleta é uma escolha cultural. Ao contrário dos brasileiros, que têm “a cultura do carro”, 90% dos dinamarqueses dão preferência à bicicleta e 51% da população da capital vai trabalhar pedalando todos os dias.
Com ciclovias construídas em nível mais alto que as ruas, a capital dinamarquesa, Copenhague, transformou o ciclismo urbano em estilo de vida sustentável, integrado ao dia a dia dos moradores. As ciclovias têm semáforos próprios e pontes específicas.
Além da infraestrutura que estimula a atividade, o ciclismo na Dinamarca é disciplina escolar. A partir dos três anos, as crianças ganham uma “carteira de motorista” de bicicleta. “Elas começam a aprender na escola, no jardim de infância, como se fosse matéria obrigatória, e depois ganham a carteira”, contou o porta-voz – “a bicicleta é levada muito a sério na Dinamarca”.

Tal como ocorre em relação aos carros, é proibido dirigir bicicletas se o condutor consumir bebida alcoólica. Além disso, é preciso sinalizar quando a bicicleta vai entrar à direita ou à esquerda. Se o ciclista pedalar sem luz ou sem capacete, paga multa.
Mas a cultura da bicicleta na Dinamarca não é obra de elevada consciência ambiental. De acordo com Fischer, foi a pobreza do país no início do século passado – um cenário igual ao brasileiro atual – que levou à adoção das bicicletas como meio de transporte dos dinamarqueses. “O país saiu arrasado da guerra”, contou. A sustentabilidade está embutida nessa opção, mas “o interesse pela bicicleta não foi proposital”. Agora é um estilo de vida e um símbolo da vida na Dinamarca.