A peregrinação por repartições públicas atrás de documentos para obter outros documentos pode ter chegado ao fim
O cidadão brasileiro, até aqui tratado pelo serviço público como suspeito à primeira vista, passou a gozar de “presunção de boa-fé” – pelo menos na esfera federal. Com a publicação do decreto presidencial 9094/2017, no mês passado, os órgãos e entidades da administração pública federal ficam proibidos de exigir do cidadão a apresentação de documentos comprobatórios da regularidade da situação, atestados, certidões ou quaisquer outros – salvo disposição legal em contrário. As normas valem também para pessoas jurídicas.
Caso precisem da papelada, os guichês da burocracia federal devem obtêla por conta própria junto aos órgãos que tiverem a informação. E se não conseguirem, bastará uma simples declaração escrita e assinada pelo próprio cidadão para comprovar a regularidade dos documentos apresentados. Para acessar documentos com informações sigilosas, o burocrata terá que obter autorização prévia do cidadão.
A autenticação de cópias de documentos também não precisa mais passar pelas filas de espera dos cartórios. O próprio servidor público federal que receber as cópias dos documentos poderá fazer a autenticação, mediante simples conferência e comparação com o documento original.
O decreto determina ainda que os órgãos prestadores de serviços devem facilitar o compartilhamento de informações, inclusive usando uma linguagem clara, sem “siglas, jargões e estrangeirismos”.
Na mesma canetada, o governo federal obriga toda a burocracia a elaborar uma “Carta de Serviços”, expondo, de maneira descomplicada e transparente, os serviços oferecidos e como acessá-los.
A obrigação é que informem até mesmo os usuários que gozam de prioridade, o tempo de espera para atendimento, o prazo para a realização do serviço e a forma de recebimento e resposta de reclamações. Se o usuário avaliar que foi mal atendido, poderá apresentar – nem tudo mudou – um formulário de reclamação, chamado “Simplifique!”.
Mas o dispositivo do decreto que promete fazer mais sucesso é o que manda a burocracia federal informar “os procedimentos para atendimento quando o sistema informatizado se encontrar indisponível”. A mais odiada resposta em qualquer repartição – “o sistema está fora do ar” – não poderá mais ficar por isso mesmo. Pelo menos em tese.
A cultura burocrata brasileira tem sido alvo de estocadas esparsas pelo menos desde os anos 70, quando o governo do general João Figueiredo criou o Programa Nacional de Desburocratização. A ideia era eliminar “formalidades e exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco” envolvido. Os mesmos termos constam do artigo primeiro do decreto publicado no mês passado.
Atestados de vida, de residência, de dependência econômica, de bons antecedentes, idoneidade moral ou pobreza deixaram de ser exigidos naquela época, sendo substituídos pelas declarações ou certidões – que agora também deixaram de ser responsabilidade do cidadão apresentar. Uma antiga resolução que dispensava o reconhecimento de assinaturas nos documentos entregues aos guichês federais também foi posta em prática, reduzindo à metade o movimento dos cartórios para esse tipo de serviço.
A luta contra a burocracia no Brasil, entretanto, permanece longe de ser vencida. Um estudo recente da Endeavor, organização sem fins lucrativos dedicada ao empreendedorismo em 27 países, mostra alguns dos superlativos nacionais nesse contexto. A regularização de um imóvel, por exemplo, leva em média 153 dias.
Pelas contas da Endeavor, um empreendedor precisa preencher, em média, 7,6 fichas nos demonstrativos de apuração do ICMS, quantidade que varia conforme o estado, podendo chegar a 19 fichas. E isso pode piorar a qualquer momento: no espaço de três anos, entre janeiro de 2012 e dezembro de 2014, foram publicados, em média, 202 decretos de atualizações tributárias por estado.
Nem mesmo para se enredar nesse cipoal burocrático o cidadão encontra facilidade. No Brasil são necessários, em média, 129 dias para abrir uma empresa – e a espera alcança 304 dias em um município gaúcho, de acordo com a ONG.