Terapia de mães: grupo de WhatsApp vira rede de apoio para mães de crianças com autismo

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Daiane, Daiane Xavier, Girlene, Katia, Maira e Marleide.
 
Parque da Cidade, em Salvador, numa manhã de domingo. Toda área estava tomada por pessoas fazendo exercícios, piqueniques, e famílias em torno de brinquedos e brincadeiras das mais diversas. No meio de todos estes, um grupo bem especial: famílias do grupo Projeto Mães Autismo Conhecer para Entender, uma rede criada com objetivo de fornecer apoio mútuo e trocar experiências de vida, que já conta com a participação de 137 mães de Salvador, Lauro de Freitas e do interior da Bahia.
 
O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, estima que uma a cada 59 crianças está no espectro autista. Até 2013, o autismo era dividido em cinco categorias, dentre elas a síndrome de Asperger. Naquele ano, quando do lançamento do último Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais da Associação Americana de Psiquiatria, o DSM-5, a classificação e as formas de diagnóstico mudaram. Hoje, o Transtorno do Espectro do Autismo – TEA, é dividido por graus de funcionalidade.
 
No Brasil a estimativa é que cerca de 1 milhão de pessoas tenham TEA. Na Bahia os números chegam à casa dos 200 mil. E apesar de serem números elevados, as causas ainda são desconhecidas, nem sempre as terapias conseguem agir de forma eficaz e o preconceito ainda assusta muito.
 
Maíra Cavalcante, 45, mãe de Gabriel, seis anos, foi quem teve a ideia de fundar o grupo, em 2017. Moradora de Lauro de Freitas, o diagnóstico veio quando Gabriel estava com quatro anos, e hoje, todo o atendimento médico e terapias estão concentrados na cidade, através do plano de saúde. “Existe o atendimento pelo SUS, mas eu sei que tem muitas mães de Lauro de Freitas precisando, para poucas vagas disponíveis. Então luto pelo atendimento do plano de saúde até como uma forma de oportunizar o atendimento para outras crianças”, destaca.
 
Através do grupo do WhatsApp são organizadas sessões terapêuticas em grupo com psicóloga, palestras com nutricionista, fisioterapeuta, e contação de histórias e outras ações em escolas, para conscientização tanto da escola como das crianças, acerca do TEA.
 
Do ponto de vista do lazer, Maíra gosta muito da receptividade da equipe do Parque Ecológico, em Vilas do Atlântico, e do acesso ao Salvador Norte Shopping. O que mais a preocupa é o preconceito. “Algumas vezes quando estamos no shopping Gabriel tem crise sensorial, e o olhar das pessoas para nós é muito ruim, como se meu filho fosse uma criança sem educação. No condomínio onde moro, sofremos preconceito constantemente. Os pais das outras crianças orientaram seus filhos a não interagir com Gabriel. Então, muitas vezes quando vamos para o parquinho ele volta para casa chorando”, conta.
 
DIREITOS GARANTIDOS, ACESSIBILIDADE E INCLUSÃO. SERÁ?
Esse ano o pequeno Benjamim, quatro anos, não vai estudar. Filho de Iara Pereira, 37, no ano passado, quando as características do TEA não estavam tão perceptíveis, Iara achou que a escola onde ele estava matriculado atendeu relativamente bem às necessidades de seu filho. “Não tinha acompanhante especializado, o material escolar e atividades não foram adaptadas, mas a professora e os colegas receberam meu filho muito bem, e conquistamos muitos ganhos do ponto de vista da socialização. O dar ‘tchau’ e um abraço no final da aula, que parece uma coisa tão boba, para uma pessoa com TEA é um passo muito grande”, destaca.
 
Esse ano Iara decidiu ir em busca de uma escola, no bairro de Brotas, em Salvador, onde residem, que proporcionasse também a inclusão pedagógica. “Muitas vezes eu visitava a escola, tinha um primeiro contato, tudo ótimo. Mas quando eu citava a questão do TEA, o discurso era outro. Tentei matricular então na mesma escola de 2018, mas a diretora me informou que já havia uma criança de inclusão na turma e por isso não ia aceitar Benjamim”, relata.
 
A Lei nº 12.764, de 2012, determina que pessoas com TEA podem frequentar escolas regulares, inclusive com direito a acompanhamento. Mas na prática as dificuldades de ensino são muito grandes.
 
Girlene Andrade, 35, já experimentou tanto o ensino público como o particular, e a conclusão é que a inclusão de verdade está longe de acontecer. “Minha filha Antonela já passou tanto por escola pública como particular, e a inclusão de fato não existe. Quando tem o cuidador, não tem a parte pedagógica, e vice e versa”, frisa Girlene.
 
Quando o assunto é saúde, a realidade em Lauro de Freitas e Salvador segue o mesmo caminho: muita demanda e poucas vagas.
 
Katia Oliveira, 39, destaca que faz o acompanhamento de seu filho, Marco Antônio, 10 anos, pelo SUS. “O que percebo é que se ampliou a quantidade de locais que atendem crianças com TEA em Salvador, mas a precariedade ainda é muito grande; são poucas vagas para a quantidade de crianças”, afirma.
 
Daiane Xavier, 30, faz o acompanhamento de Kauã, cinco anos, no CAP´s de Lauro de Freitas.” Assim que descobri o diagnóstico de TEA, em dezembro de 2017, no CAP´s de Lauro de Freitas, corri atrás de garantir todos os benefícios que ele tem direito, como o passe livre e BPC, e criei o grupo de Whatsapp das mães do CAP´s, para ajudar as outras mães com o conhecimento que já tenho”, conclui.
 
A LUTA PELA DESCONSTRUÇÃO DE MITOS
Dia 2 de abril é uma data muito importante para essas mães. Trata-se do dia Mundial de Conscientização do Autismo, um momento em que o assunto fica em evidência e muitos mitos podem ser desconstruídos.
 
Katia Oliveira, conta que quando soube do diagnóstico de Marco Antônio demorou a ‘cair a ficha’, porque o que ela convivia diariamente não era o que ela já havia visto, ouvido ou assistido sobre o autismo. “Respeito outras mães, mas, para mim receber o diagnóstico de TEA não gerou um sentimento de luto. Eu sigo a doutrina espírita, e compreendo, dentro do que eu acredito, o porque deste contexto. Mas me recordo de questionar a médica se ela tinha certeza do diagnóstico, pois o comportamento dele era completamente diferente de toda a informação que eu já tinha recebido sobre o autismo através dos noticiários de TV. E hoje a minha luta é por essa desconstrução”, destaca.
 
Mitos sobre o TEA surgem constantemente. Um dos mais recentes, que ganhou destaque internacional, foi o surto de sarampo no Canadá, que ao que tudo indica aconteceu porque os pais decidiram não vacinar as crianças por acreditar que a vacina MMR (que combate sarampo, caxumba e rubéola) poderia provocar autismo, o que não é verdade.
 
Katia Oliveira destaca que a preocupação está para além disso, e que já existe hoje um verdadeiro ‘mercado do autismo’, onde pessoas se aproveitam da fragilidade das famílias com promessas de cura em troca de grandes fortunas. “São promessas de tratamento mirabolantes, remédios para isso e aquilo, e tem muitas famílias embarcando nessa onda do ‘vou te curar’. Esse trabalho de desconstrução também é para isso. Para saber o que se está se dizendo e quem são os profissionais de confiança”, conclui.
 
FORÇA DE MÃE
“Quando você me pergunta se me sinto atendida em minhas demandas, a resposta é não. Tenho certeza que não entrei em depressão porque a minha rede de apoio familiar é muito forte. Acho que ainda temos muito o que caminhar e é maravilhoso ver essa mobilização, perceber esse cenário com tantas mulheres lutando por seus filhos, e agora eu me incluo entre elas”.
FOTO: Iara e o filho Benjamim
 
O desabafo de Iara Pereira, demonstra a intensidade de uma luta que ainda está no início. Todas as mães entrevistadas relataram que participar de grupos de WhatsApp tem sido uma importante ferramenta de apoio, que supre uma carência de cuidados próprios. “Penso que nós mães também deveríamos ter um acompanhamento psicológico, e não apenas as crianças. Talvez até na mesma hora da terapia deles. Então o grupo de WhatsApp das mães acaba suprindo essa carência. Trocamos experiências; para aquelas que têm filhos mais novos conto o que fiz em determinada situação e que funcionou, e com as mães que têm filhos mais velhos, tento aprender. O objetivo não é apontar o dedo para ninguém, mas sim, dar apoio”, destaca Girlene Andrade.
 
Fazer planos é bem complicado, muitas vezes os próprios médicos desacreditam as crianças. Mas mães são tinhosas e não desistem. “Penso sobre tudo que ainda pode acontecer com meu filho, desde bullying na escola, preconceitos; e já me preparo pra dar esse suporte. E busco forças em Deus, no meu marido, Eliomar, na família”, declara Daiane Xavier.
 
“Você mãe, que recebeu o diagnóstico de seu filho, busque as redes de apoio, busque outras famílias para você conversar, desabafar, trocar informações. Muitas vezes o que eu estou falando você já vivenciou ou vai vivenciar; ou pelo menos você vai entender o que estou falando e sentindo naquele momento; porque quem mais entende o que eu passo é outra mãe que passa por algo semelhante, independente de classe social, grau de instrução ou recursos disponíveis”, conclui Katia Oliveira.
 
No pódio, em Abu Dhabi
 
“O esporte é muito mais do eu pensava: transformou o meu filho”.
Marleide Nogueira, mãe de Igor, autista e campeão mundial de jiu-jitsu.
 
“Seu filho não vai ler, não vai escrever, e não vai ter a capacidade nem de amarrar o cadarço do sapato”. Essa foi a sentença dada pelo médico neuropediatra que diagnosticou o menino Igor Nogueira com autismo. Isso em meados de 2002, uma época que pouco se falava sobre autismo, e nada se falava sobre inclusão.
 
Mas a luta de Marleide Nogueira, 44, começou anos antes. Foram várias idas e vindas em médicos a fim de entender o que estava acontecendo com o seu filho, Igor, na época com três anos. “Confesso que recebi o diagnóstico com um certo alívio, porque depois de quatro anos de busca, ou seja, meu filho já estava com sete anos, eu estava recebendo um diagnóstico e a partir daquele momento eu sabia o que era, e poderia ir atrás de tratamento”, frisa.
 
As características de Igor batiam exatamente com a definição do autismo, mas para Marleide era muito duro ter que aceitar aquela sentença que o médico havia dado a seu filho. E ela não aceitou e decidiu escrever uma história diferente para seu filho.
 
Foi mais de um ano até conseguir uma escola regular que aceitasse Igor. “Andei muito. Na escola específica para pessoas com deficiência, senti que Igor estava regredindo e aumentando a quantidade de ‘manias’. Nas escolas regulares a resposta que eu recebia era sempre a mesma, que não trabalhavam com inclusão. E era uma época tão complexa de comunicação que eu pensava ser a única mãe que tinha um filho com autismo”. Por indicação de duas amigas, Miriam e Eunice, Marleide chegou até uma escola regular no bairro da Pituba, em Salvador. A diretora, pró Lea, os recebeu para que pudesse enfim alfabetizar Igor. Mas ela impôs como condição que Marleide ficasse na escola como acompanhante do filho.
 
Marleide, formada em Petróleo e Gás, já havia desistido de sua carreira acadêmica e profissional. Seu marido garantiu o sustento da casa, e ela entrou de cabeça, corpo e alma no processo de educação de Igor.
 
“Não me pergunte como, mas eu desenvolvi uma metodologia com Igor me apropriando justamente de duas características do autismo: a repetição e a memorização. Aprendi também que o tempo dele é diferente do das outras crianças, mas quando ele aprende, não esquece mais. Foi um ano e meio na sala de aula, junto com meu filho, e deu certo”, frisa.
 
Durante esse período, já havia dois anos que Igor estava na escola, a diretora pediu que Marleide comparecesse na diretoria. “Era para nos comunicar que um pai de dois alunos da escola tinha ameaçado retirar os filhos, caso Igor continuasse na escola. Confesso que meu coração ficou apertado, já pensei um monte de situações, em ter que tirar o meu filho da escola, começar tudo de novo. Para minha surpresa ela disse que explicou ao senhor, que o meu filho era tão importante quanto os filhos dele. O pai acabou por tirar os filhos dele da escola. Já eu, fiquei muito emocionada, porque era a primeira vez que eu sentia alguém me estendendo a mão, o que fez com que eu me fortalecesse para continuar na batalha”, lembra.
 
Em 2016 Igor concluiu o ensino médio, e já tem uma meta para o futuro: a graduação em Educação Física.
 
O esporte entrou na vida de Igor em 2013. Nos exames de rotina da família, todos estavam com colesterol alto. “Ou toma remédio ou faz exercício”, disse o médico. Marleide escolheu os exercícios e começou a acompanhar o filho à academia. Lá conheceu o anjo que transformou as suas vidas. Marcelo Vidal, professor de Educação Física e faixa preta de jiu jitsu, passou quase dois meses tentando convencer Marleide a deixar Igor treinar.
 
“Eu tinha uma visão equivocada do esporte. Achava que era violento, que ia machucar meu filho ou ele ia machucar alguém. Mas Marcelo insistiu tanto que pensei: ‘Vou deixar. Esporte de contato? Igor tem aversão ao toque; não vai dar certo mesmo e ele larga do meu pé’. Depois de cerca de três meses treinando, um dia em casa fui repreender Igor e pela primeira vez ele me olhou nos olhos. Comecei a chorar, foi uma das maiores emoções de minha vida, e eu entendi que o esporte era muito mais do eu pensava e que estava transformando o meu filho”, conta.
 
Daí em diante foi questão de tempo. Em 2016, Igor começou a participar de competições e entrou para a história do jiu-jitsu baiano como a primeira pessoa com autismo a disputar, de igual para igual, competições sem deficiência, e a ganhar medalhas. Em 2018 veio a consagração: medalha de ouro, na divisão, e a prata, no absoluto, nas competições de ParaJiu-Jitsu do World Pro, da UAEJJF, que acontece em Abu Dhabi (UAE). Este ano, Igor volta para Abu Dhabi para defender o título.
 
“Nós começamos a ser chamados para dar entrevistas em veículos de alcance nacional. Fomos no Encontro, com Fátima Bernardes e Esporte Espetacular, ambos da Rede Globo, e percebemos que a nossa história poderia fazer a diferença.
 
Hoje Igor está com 23 anos, somos ativistas, sobretudo sobre a importância do esporte na vida do autista, e queremos ajudar a reescrever a história de outras famílias”, conclui Marleide.
 
Igor Nogueira com os pais, no programa Encontro, de Fátima Bernardes, na Rede Globo

 

4 COMENTÁRIOS

  1. Gostaria de entrar em um grupo no WhatsApp, sou mãe de autista e preciso de uma rede de apoio,estou perdia 5199641729

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