Com muita alegria fui recebida por Leonarda Pereira Franco Bispo, carinhosamente conhecida como dona Caçula, na sua casa no Centro de Lauro de Freitas, onde reside desde 1945.
Acompanhada pelos filhos, Rita e Wilson Franco, ela me aguardava sentada no sofá bege da sala, como sempre, bem arrumada, elegante e risonha. Uma dama com 101 anos (na época do encontro, em novembro de 2021), lúcida e muito educada, sorridente e entusiasmada, em plena pandemia, cumprindo todos os protocolos orientados pela OMS.
Na condição de presidente da Academia de Letras e Artes de Lauro de Freitas, fui ao seu encontro em busca de depoimentos para a segunda revista literária da Academia, que lhe prestou homenagem em 2010, concedendo título de Menção Honrosa, na gestão do presidente Marivaldo Batista da Paixão.
Nascida, a 25 de junho de 1920, na Fazenda Sucupió, Camaçari, na freguesia de Vila de Abrantes, dona Caçula, tem lembranças maravilhosas de uma infância muito feliz, com seus pais – o fazendeiro Silvio Pereira Franco e dona Crescência Figueredo Franco e a companhia dos avôs paternos e maternos.
Em suas memórias estão marcados registros de uma vida abastada, pois a família tinha posses e levava uma vida próspera, com fartura, criação de gado e carneiro. Recordou, com prazer, do pomar repleto de árvores frutíferas que deliciavam adultos e principalmente as crianças da família, e ainda sobrava para abastecer amigos na região e “eram muitos amigos”, recordou.
A família era muito unida e numerosa, com dez irmãos: Isidro, Almerinda, Lídio, Milton, Silvio, Joselita, Antônio, José e Natália Pereira Franco. Dona Caçula lembrou do quanto se ajudavam mutuamente. Os cuidados com o aprendizado dos filhos sempre foi intenso e por isso pagavam uma professora para ensiná-los em casa. No local onde moravam, só havia uma professora, que ensinava todas as séries. Dona Caçula fez o curso primário em Portão, com a professora Laura Gonçalves.
Presentes durante nosso encontro, os filhos de dona Caçula, Rita e Wilson Franco, lembraram do cotidiano da vida da matriarca, repleto de boas recordações da infância, adolescência e até agora, adultos, como partícipes de uma família bem integrada, unida, que mantém o salutar hábito de se reunir sempre em volta da mesa na casa da mãe, para celebrar e agradecer. Fraternalmente se organizam para conviver cotidianamente em harmonia, cuidados e admiração mútua, entre filhos, genros, netos e bisnetos.
Esses valores não são cultuados apenas em família. Dona Caçula é solícita com todos, anônimos ou personagens ilustres da comunidade. Todos vão beber sabedoria de vida e ensinamentos, direto na fonte, com a mestra. Todos, anônimos e famosos, se orgulham de compartilhar, com a família, as celebrações de cada aniversário dela. Segundo ela, um dos grandes motivos para esta longevidade é ter “trilhado o caminho da honestidade, respeito e amor ao próximo, com muito trabalho, princípios e valores que enobrecem o ser humano, e ter conseguido transmitir a seus filhos e familiares estes ensinamentos, que lhes proporcionam retorno em bênçãos, saúde, paz, muito respeito e o amor de todos”.
O relato encontrou eco nos corações e olhos marejados de orgulho, dos filhos, Rita e Wilson, que sentem uma inexplicável satisfação ao falar da mãe querida: “ela foi e é uma batalhadora, exemplo de fé, bondade, solidariedade, empreendedora, líder e disseminadora de cultura e de hegemonia familiar”, relatou Wilson.
No município, é merecedora do reconhecimento aos valores e méritos de uma vida íntegra, ao lado do marido (in memoriam) – o amor de sua vida – o também ilustre José Bispo, conhecido como Zé do Cachimbo, nascido em 13 de setembro de 1916, em Santa Terezinha, no Recôncavo Baiano. Aqui chegou, ainda jovem, para trabalhar em uma fazenda no bairro de Portão.
Se conheceram em uma festa de São João, em Catú de Abrantes. Muito animado, determinado e divertido, José gostava muito de festas. Um ano depois se casaram, no dia 3 de março, celebrado em uma grande festa na Fazenda Sucupió, e foram morar na fazendinha de Portão. Em 1944 se mudaram para o Centro de Santo Amaro de Ipitanga, para uma casa ao lado da qual reside desde 1945.
José Bispo deixou de ser vaqueiro. Morando na cidade, aprendeu logo o ofício de pedreiro e foi construtor de diversas casas e paróquias da Igreja Católica, em parceria com o padre João Abel, e se tornaram grandes amigos.
Mesmo depois de casada fez cursos informais que lhe renderam trabalhos voluntários junto a famílias carentes, como aplicação de injeção, furar orelha de crianças e em especial, um curso profissionalizante que fala com orgulho: “tenho o Certificado de Costureira”, se tornando professora de corte e costura do município, que ajudava, e muito, na complementação da renda familiar, reconhecendo que lhe deu muita energia, determinação e visão de crescimento.
Constituíram uma família numerosa, com nove filhos, a maioria moradores no município. Fala com muito amor de todos eles: Almir (foi vereador de Lauro de Freitas, Camaçari e Jussara e trabalhou na construção da barragem do Rio Joanes, na antiga SAEB, hoje Embasa), Carlos, Wilson, (advogado, “me dá toda assistência possível, está aqui todos os dias”), Ruy, Zenilda, (faleceu aos onze meses), Rita, (sempre fazendo ações sociais, exerceu vários cargos na gestão pública e é integrante do Rotary Club Lauro de Freitas), Paulo Fernando, Regina Célia e Rosana.
“Meus filhos me ajudaram, trabalhando junto comigo e com o pai, para o sustento da família e hoje me acolhem como uma filha, sinto-me muito amada pelos meus familiares”, disse. “Sempre tivemos muita preocupação em matricular os filhos nas melhores escolas e na primeira infância estudaram particular com as professoras dona Cacilda, esposa do segundo prefeito, Amarildo Tiago dos Santos e dona Catarina de Sena, esposa do senhor Elionel, que trabalhava no Aeroporto e dona Netinha que era do movimento religioso da Paróquia de Santo Amaro de Ipitanga”, lembrou.
Com o desenvolvimento da cidade surgiram a Escola Jesus Cristo, o Colégio Américo Simas e o Fenix, este, mantido pela Maçonaria. Dona Caçula também lembra da professora “Dede” – que dava curso preparatório para admissão e lutou para trazer para o município o Colégio Ipitanga, junto com Gregório Pinto de Almeida e Delsic Públio de Castro Torres.
Como na época não havia escola de ginásio em Lauro de Freitas, os filhos continuaram os estudos em Salvador.
Dona Caçula, até antes da pandemia do coronavírus, em março de 2020, vendia coco seco na janela da sua casa, estratégia dos filhos para mantê-la ativa. Ficou muito triste quando suspenderam a atividade, para evitar o contato com pessoas.
Ela ficou muito triste. A atividade era a forma de interagir com as pessoas que passavam pela sua porta e isso lhe deixava feliz. As pessoas paravam para conversar com ela, falar do passado, contar causos, e na despedida, sempre levavam um coquinho seco.
Com uma memória invejável ela se lembra de todos os acontecimentos importantes da cidade, dos amigos, personagens públicos, fatos históricos, a vinda da Base Aérea de Salvador, a Escola Jesus Cristo, o Américo Simas, o primeiro Posto de Saúde, as festas religiosas – do Divino, de São Sebastião, de Santo Amaro, de São João, de São Cristóvão, dos Ternos de Reis de dona Cotinha, da Chegança do seu Gonçalo, no Pé de Oiti, do bloco de carnaval de dona Egídia, das procissões de São Sebastião e Santo Antônio, do Zé Gipão, motorista na Aeronáutica, que trazia parque de diversões para completar a animação nas festas. Ela lembra de tudo e de todos.
Nesta animação, aproveitava a oportunidade de comercializar produtos junto com os filhos: “ganhávamos um bom dinheiro”, lembrou, “pois ser comerciante é muito bom, você todo dia tem dinheiro na mão”. Retratou todos esses momentos com muita lucidez, sabedoria e amor a tudo que viveu em Santo Amaro de Ipitanga, hoje cidade de Lauro de Freitas.
“Mesmo ensinando meus filhos a trabalhar muito cedo, sempre tivemos muito cuidado com a criação deles”. Ela lembrou que eles gostavam muito de ir brincar nas dunas, onde hoje passa a av. Amarílio Thiago dos Santos, colhiam frutas nas chácaras. Ela ficava preocupada, pedia para não irem até o rio Ipitanga ou ao mar. “Quando chegavam molhados, sabiam que tinham desobedecido, então levavam uma surra!”, lembrou, dando uma grande risada!
Dona Caçula gostava de reunir a família com deliciosas comidas tradicionais. Fatada, carneiro cozido e peixada, não faltavam na mesa nas datas festivas, nem nos finais de semana. Não precisava ter motivo para se reunirem e celebrarem.
“Sempre fui muito religiosa. Fundei o grupo de Testemunhas de Jeová no município, em 1960. Mesmo com uma deficiência física, sequela da paralisia infantil que tive aos 4 anos de idade, nunca deixei me abater. Fui privilegiada em sobreviver e aproveitei a oportunidade para ser uma pessoa feliz e solidária”, relatou, demonstrando fé e sabedoria.
“Minha filosofia de vida sempre foi valorizar a família, os bons amigos, cuidar do próximo, acolher os necessitados, preservar a lealdade, ter caráter. Ainda ensino aos meus netos e bisnetos tudo isso com orgulho, dando meu próprio exemplo de vida, pois levamos da vida o que deixamos de valores, e exemplos de amor e fraternidade entre os que tivemos a oportunidade de conviver, servir e ter gratidão por tudo que recebemos e vivemos”.
Essa lição não se pode esquecer.
Dona Caçula traz no seu depoimento a vivacidade de sua memória privilegiada, repleta de lições de uma vida plena: “Me vem a lembrança de pessoas que considero que deixaram para nós, que convivemos com elas, lembranças, saudade e gratidão. Além dos meus pais, meu marido, meus irmãos, alguns amigos me vem à mente agora: meu compadre enfermeiro de Aeronáutica, Celso Alves Pinheiro da Silva, primeiro prefeito de Lauro de Freitas, que me ensinou a aplicar injeção nos acamados; Aderbal, enfermeiro da Aeronáutica, que trabalhou no primeiro posto médico de Lauro de Freitas, um pioneiro; Joaquim Carvalho, Mãe Lucia (parteira), Valentina de Portão, Gregório Pinto de Almeida, Tenente Santos e até me sinto falhando com tanta gente que deu o seu melhor por Lauro de Freitas e que não tenho como citar para não me alongar, mas que com certeza as sementes lançadas continuam a florescer, são os legados que deixaram na passagem por aqui. Fui me tornando referência pela cidade e abraçada por todos os gestores que por aqui já passaram, a prefeita Moema me visita constantemente, é uma amiga cuidadosa e carinhosa que me deixa muito feliz quando vem me ver. Recentemente ela me convidou para ser a primeira idosa a se vacinar no município, virei garota propaganda da campanha de vacinação contra Covid, me sinto gratificada em, mesmo com 101 anos, estar contribuindo com a saúde da população do meu município, panfleto circulando pela cidade com minha foto tomando a vacina acompanhada pela prefeita Moema e muitas autoridades. Hoje me sinto realizada, feliz em ver que meus filhos todos seguiram meus ensinamentos e passaram aos meus netos e bisnetos os valores que pautaram as nossas vidas, mesmo com muitas dificuldades vencemos. Tive a felicidade de comemorar os meus 101 anos agora no dia 25 de junho de 2022, acompanhada de todos eles, desejando viver cada momento como único e recebendo a gratidão de todos, revelada no dia a dia com orações, cuidado, amor, abraços, declarações, companhia, energia, alegria, desejos de reviver e de viver comigo as boas recordações das coisas que amo fazer, viagens, festas, restaurantes, proporcionando-me momentos de lazer. Agradeço cada dia que acordo e que saímos para sentir a brisa do mar, o sol, a natureza na companhia de cada um deles”, finalizou.
NOTA DA AUTORA: O que quero deixar registrado como importante nesta entrevista? D. Caçula é a voz que precisa ser ouvida, a lição a ser seguida, o exemplo a ser admirado. A perfeição da sua memória traz o orgulho de ser quem é, lembrar o caminho traçado por toda uma vida pautada no que há de melhor. Gostaria de passar para a posteridade as lições de vida dessa linda senhorinha, como ser humano. E esta lição, este ensinamento, é o mesmo que vou levar no meu íntimo e o que pretendo deixar para as gerações que virão: é amor a Deus, paz, gratidão, saudade, recordações e eternos valores.