Galinha na cozinha

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Gilka BandeiraÀs vezes a tristeza ronda, ronda, mas só ronda, porque não pode atracar onde há luz e cor, ainda que veladas pela cortina das lágrimas. E luz e cor não faltam nesta terra “abençoada por Deus”, “bonita por natureza”, “onde se plantando tudo dá”, inclusive a esperança de continuar tendo esperanças, mesmo com todos os desencontros e absurdos desta vida.

Absurdos criminosos como a predatória pesca a bomba, que prossegue em Itaparica, conforme não deixam dúvidas os estrondos de dinamite no mar, acabado de ser escutados pela cidade inteira, menos pela colônia de pescadores, menos pelas autoridades competentes, menos por quem tinha obrigação de fiscalizar e coibir. De desatinos a desatinos semelhantes, a esperança fraqueja e a tristeza ousa abeirar-se.

Mas, há os brilhos e as cores e além do mais, a primavera se avizinha apaziguando os ventos, embora, por ora, haja muito vento solto, pois que agosto ainda não terminou e, no seu mês, São Lourenço não deixa de atender aos pedidos dos velejadores e dos empinadores de arraias.

E ainda há um friozinho nas madrugadas a pedir aconchegos de corpos quentes ou alentadores cobertores, enquanto o sol remancha a aparecer e esquentar.

No entanto, as chuvas vão espaçando, borboletinhas amarelas fazem visitas de reconhecimento ao jardim e já se espalha no ar o aroma dos botões prestes a desabrochar e mesmo de algumas flores temporãs.

Logo as noites da Ilha estarão bem perfumadas e os dias mais azuis. Sim, a primavera vem vindo, prometendo estear as esperanças por mais um tempo e há uma galinha na cozinha pintando o caneco.

Explico a entrada da galinha neste imbróglio.

A cerca de um mês, o caseiro do vizinho ofereceu umas galinhas. “É bom”, ele disse. “Elas tiram os matos. Não vai precisar mandar capinar e ainda tem uns ovos frescos para comer.” E logo se prontificou a trazer duas galinhas e um galo. Disse-lhe que não tinha dinheiro pra comprar galinhas e que não queria ter mais trabalho, embora a ideia de ter um galo cantando ao amanhecer não fosse de tudo má e não seria nada desprezível ter ovos de quintal.

Ele insistiu, não ia vender, apenas deixar aqui. Só restava aceitar a oferta.

Assim que chegaram se puseram a ciscar e limpar o quintal. Depois da dificuldade de achar quem capinasse, era uma bênção. O dia passou sem novidades, estavam tão ocupados, com a fartura encontrada no terreno sem capinagem há mais de mês, que nada mais fizeram.

No fim da tarde, os galináceos sumiram. Sabia que teriam de improvisar poleiro, porque aqui não há galinheiro, nem como os que minha mãe fazia, com cerca de pau a pique e varas suspensas horizontalmente do chão. Não entraram no canil vazio, nem subiram na casinha da bomba nem nos galhos da mangueira. Desapareceram simplesmente no quintal murado e de portões laterais fechados. Paciência, no escuro as buscas tiveram de cessar.

No dia seguinteLúcia acordou a tempo de ver os penados descendo do alto da mangueira. Tinham se encarapitado quase no olho da árvore de cerca de 20 metros de altura, por isto não os achamos.

Frustação foi não ouvir o canto do galo. Além de não cantar, apanhava das galinhas.

Que galo era este?…

Porém dias depois, enfim cantou roufenho. O bichinho era um frango e a gente fazendo mal juízo… Em seguida foi a vez dos ovos, pequenos, bonitinhos, saudáveis, uma alegria. Maravilha se não fosse o local do ninho escolhido pela marronzinha e o estardalhaço que faz antes, ao se ajeitar e após, ao proclamar seu feito aos quatros ventos, fazendo estrondosa propaganda, igual a de certas lojas de eletrodomésticos.

A pretinha, discretamente fez o ninho na varanda do fundo, e tem vozinha melodiosa. Mas a outra adotou a cozinha e pula pela alta janela para entrar, salta na mesinha, derruba coisas, cacareja por horas a fio, ensurdecedoramente, a ponto de impedir conversas e de se intrometer na crônica.

Desconfio que o galo despertador e estes ovos estejam saindo muito caros. Rasparam o quintal de matos, mas também atacaram as plantas. As folhas de chás praticamente acabaram e nem as jovens bananeiras nem a acerola escapam. E ainda tem o gasto com os milhos e o escarcéu da marronzinha na cozinha.

No entanto, o cocoricar do galo de manhãzinha conclama para um novo dia. Então, abro a janela e vendo a pitangueira reluzente, me ponho a cantar a canção Estrada do Sol, letra de Dolores Duran musicada por Tom Jobim: “É de manhã/ Vem o sol/ Mas os pingos da chuva / Que ontem caíram/ Ainda estão a brilhar/ Ainda estão a dançar/ Ao vento alegre/ Que me traz esta canção// Quero que você/ Me dê a mão/ Vamos sair por aí/ Sem pensar/ No que foi que sonhei/ Que chorei, que sofri/ Pois a nova manhã/Já me fez esquecer/ Me dê a mão/ Vamos sair pra ver o sol.

E ainda que as mãos não se entrelacem, ainda que ninguém aceite o convite, irei por aí em boa companhia, na minha própria e nas que a saudade teimam em manter por perto.

Irei por aí e verei o sol. Verei o sol de cada dia que faz possível a vida neste planetinha azul; verei o sol a revelar as cores e os brilhos que sustêm a tristeza ao largo por mais algum tempo. 

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