A partir deste Verão todos os ninhos de tartaruga marinha serão mantidos nas praias, incluindo Ipitanga, Vilas do Atlântico e Buraquinho, em vez de transferidos para Busca Vida, como anteriormente. Uma equipe do Tamar continuará percorrendo as praias em busca de rastros de tartaruga que indiquem um ninho novo, mas apenas para cercar o local.
Foto: Tartarugas recém-nascidas buscam o mar
Os próprios rastros serão mantidos para habituar as pessoas à presença das tartarugas, que começaram a subir às praias no mês passado para a temporada de desova que vai até março no litoral norte baiano. As fêmeas fazem entre duas e nove desovas cada, a depender da espécie, preferencialmente à noite.
Os filhotes levarão de 45 a 60 dias para nascer, a partir de novembro, nas praias em que as tartarugas tiverem desovado e não mais em Busca Vida ou na Praia do Forte, para onde os ovos eram transferidos até o ano passado. De cada mil filhotes, somente um ou dois conseguirão atingir a maturidade, tantos são os obstáculos naturais para uma espécie que sobreviveu à extinção dos dinossauros só para enfrentar as pragas da ocupação humana.
Os ninhos sob risco de fatores naturais, como erosão em função da ação da maré, serão transferidos pelo Tamar para um ponto mais seguro da praia. Todos os outros serão apenas marcados e cercados no próprio local da desova – entregues aos cuidados das autoridades ambientais do município e da população.
Apenas no trecho de sete quilômetros entre o Flamengo e a foz do rio Joanes, chamado de Buraquinho pelo Projeto Tamar, dezenas de tartarugas são esperadas nesta temporada. Entre setembro de 2016 e março deste ano foram 69 desovas nas praias de Ipitanga, Vilas do Atlântico e Buraquinho.
O número vem diminuindo pelo menos desde a temporada 2012-2013, quando o Tamar registrou 109 desovas no trecho. No ano seguinte foram 107 e depois 102. Em 2015-2016 as desovas na área caíram para 78. Melhorar o desempenho nesta temporada dependerá muito dos moradores e turistas.
Em termos nacionais a desova de cabeçudas, comuns no litoral norte, também mostraram redução em relação à temporada anterior: 15%. O oceanógrafo Guy Marcovaldi, coordenador nacional do Tamar, explica que a oscilação “normalmente acontece a cada dois ou três anos”, seja por razões naturais ou causadas pelo ser humano. Mesmo assim, os resultados ainda são positivos. Em contrapartida, a desova de tartarugas-oliva, que também ocorre no litoral norte baiano, aumentou 31%. A temporada de 2016-2017 ultrapassou os 25 milhões de filhotes protegidos e o Tamar aguarda para o final deste ano o “filhote 35 milhões”.
ILUMINAÇÃO
Um dos fatores que influenciam a diminuição das desovas é a presença de luz no calçadão de Vilas do Atlântico – o que afasta as tartarugas em busca de lugar seguro para desovar. A luz artificial também desorienta as recém-nascidas, que em vez de correr para o mar ao sair do ninho, seguem em direção à fonte de luz mais forte: um poste.
O primeiro sistema de iluminação do calçadão, projetado com o auxílio do Projeto Tamar, cerca de 20 anos atrás, dirigia o foco de luz apenas ao piso. Os atuais postes, instalados há quase 15 anos, apesar do anteparo não cumprem a mesma função por estarem a menos de 50 metros da faixa de maré de sizígia (a altura das marés alta e baixa – relativa ao nível do mar médio – também varia com o ciclo lunar. Nas luas nova e cheia, as forças gravitacionais do Sol estão na mesma direcção das da Lua, produzindo marés mais altas e mais baixas, chamadas marés de sizígia).
Além disso, várias das luminárias foram substituídas por outras que nem o anteparo têm, apesar da prefeitura, responsável pela iluminação pública, ser obrigada a seguir os critérios técnicos estabelecidos. Além disso, há residências da orla que iluminam diretamente a praia. A fiscalização, obrigatória por meio de lei específica, é inexistente.
Foto: Tartaruga sobe ao ponto mais distante da praia para desovar
A legislação ambiental da Bahia proíbe a iluminação das praias para proteção das tartarugas marinhas por meio da Lei 7.034, de 13 de fevereiro de 1997 e da Portaria nº 11, de 30 de janeiro de 1995. E a Resolução nº 10, de 24 de outubro de 1996, do Conselho Nacional do Meio Ambiente estabelece que o licenciamento de empreendimentos em praias com ocorrência de tartarugas marinhas deve contar a avaliação do Tamar.
De acordo com a lei, não pode haver iluminação numa faixa de 50 metros contados a partir da linha estabelecida pela maré de sizígia – a maior preamar verificada no ano. A lei diz ainda que compete à Coelba, em conjunto com o Tamar, a identificação das áreas que necessitam de adequação e o estabelecimento de critérios técnicos para essa adequação quando a iluminação já existe, emitindo pareceres prévios.
A fiscalização dessas áreas e o acompanhamento dos projetos, inclusive de adequação da iluminação, também são responsabilidade da Coelba e do Tamar. Já a prefeitura municipal, responsável pela iluminação pública, é obrigada a seguir os critérios estabelecidos.
Num esforço para fazer valer a lei, o Tamar produziu uma cartilha que visa convencer os condomínios costeiros a adequar a iluminação, fornecendo orientações básicas. Dos 45 condomínios existentes nas praias de Barra do Jacuípe, Guarajuba e Itacimirim, no litoral norte, 38 já adequaram a iluminação para proteger as desovas e os ninhos.
As ações de educação ambiental nesse sentido acontecem desde 2009. “No começo foi difícil, eles eram relutantes”, conta Nathalia Berchieri, 32 anos, bióloga responsável pelo monitoramento das praias numa área de 47 quilômetros a partir da base de Arembepe. “Eles hoje cuidam da praia e têm orgulho pelo quintal da casa deles” – verifica.
Nathalia Berchieri e Renata Buffa marcam e cercam ninho de tartaruga em frente ao Vilas Village, em Vilas do Atlântico: no calçadão, o poste de luz com anteparo ainda representa perigo
Com Renata Figueiredo Buffa, 27, ecóloga do Tamar, Berchieri supervisiona as desovas e acompanha os ninhos em oito trechos de praia desde a Boca do Rio, em Salvador até a foz do Jacuípe, em Camaçari. Trata-se da mais importante área de desova de tartarugas em todo o litoral brasileiro. Elas reconhecem que “será muito trabalhoso, pelas ameaças de iluminação”, cuidar das praias de Vilas do Atlântico e Ipitanga este ano.
O trânsito de veículos na areia, legalmente proibido, é outro desafio. Quadriciclos e mesmo automóveis prejudicam ninhos e filhotes e atropelam ou afugentam fêmeas prestes a desovar. Outro problema de grande porte é a interferência de cadeiras e barracas de praia nos locais dos ninhos. O lixo que os banhistas deixam na areia torna-se obstáculo tanto para fêmeas que vão fazer seus ninhos como para os filhotes a caminho da água. No mar, o lixo confunde as tartarugas e pode ser engolido por engano, levando à morte.
NOSSA PRAIA
A manutenção dos ninhos nas praias é resultado do esforço do Tamar, ao longo de oito temporadas reprodutivas consecutivas, na execução do programa Nossa Praia é a Vida no litoral norte da Bahia. Fundamental para o programa é a participação dos usuários das praias, inquilinos, proprietários das casas dos condomínios, funcionários de hotéis e pousadas, donos de comércio e barracas. A adequação da iluminação nos condomínios litorâneos é um destaque.
“Quase não precisamos mais remover os ninhos para protegê-los, apenas aqueles em risco iminente”, conta a bióloga do Tamar Luciana Veríssimo. “As pessoas são os nossos olhos, nos avisam sempre que há alguma tartaruga na praia ou filhotes desorientados”, garante.
Busca Vida, que com Interlagos é a praia mais protegida de todo o litoral norte em função das restrições de acesso, continua campeã de desovas: 842 na última temporada, mais de quatro mil nas últimas cinco. O trecho de Santa Maria, que vai de Interlagos a Arembepe, recebeu 705 desovas em 2015-2016, mais de três mil em cinco temporadas.
De acordo com a oceanógrafa Neca Marcovaldi, coordenadora de conservação e pesquisa do Tamar, atualmente 99% dos ninhos permanecem em seu local original do norte do Rio de Janeiro ao norte do Rio Grande do Norte. Ela credita isso “ao trabalho de sensibilização, educação ambiental e de inclusão social junto às comunidades locais e turistas”. Este ano será a vez de Lauro de Freitas provar que respeita as leis e as tartarugas marinhas.
Desde 1998 uma lei federal impõe detenção de seis meses a um ano e multa a quem impede a procriação da fauna, modifica, danifica ou destrói ninho. As penalidades são aplicáveis a pessoas físicas e jurídicas. Mas até a década de 80 era um hábito comum, nas comunidades litorâneas, matar tartarugas marinhas para consumir a carne. Os ovos eram coletados nos ninhos para vender como tira-gosto em bares praianos. O casco servia para fabricar armações de óculos, pentes, pulseiras, anéis. As fêmeas eram capturadas quando subiam à praia para desovar.
Foto: Ninho de tartaruga marinha em praia: os ovos serão chocados por 45 a 60 dias na mesma praia em que foram colocados
Quando o Tamar lançou ao mar a primeira ninhada nascida sob sua proteção, havia praticamente uma geração de crianças e jovens daquelas comunidades que nunca tinham visto um filhote de tartaruga. As práticas predatórias raramente acontecem atualmente nas áreas protegidas, mas o descaso com o meio ambiente e a ideia de que as praias são de ninguém em vez de serem de todos ainda levam perigo aos ninhos.
A aglomeração de pessoas na noite de réveillon em Vilas do Atlântico, em pleno pico da temporada de desovas e nascimentos, é uma das ameaças em perspectiva. Na tentativa de envolver mais os responsáveis pelo cumprimento das leis, Berchieri vem fazendo um trabalho de educação ambiental. Agentes da Guarda Municipal de Lauro de Freitas também passaram por um curso de capacitação do Tamar.
O esforço de educação do Tamar inclui abordagens aos banhistas e as populares solturas de filhotes e tartarugas reabilitadas. A instalação de placas informativas e cartazes em bares e barracas de praia é outro recurso. No fim, é o comportamento da população em geral que mais impacto terá na preservação ou depredação dos ninhos. Nesse sentido, o passado fornece uma perspectiva positiva de futuro.
A base do Tamar em Arembepe, criada em 1983, quando a legislação de proteção ambiental praticamente não existia, foi inicialmente a “base de Interlagos” porque as ações de proteção às tartarugas marinhas na região começaram por iniciativa dos moradores do condomínio de Interlagos. Só em 1992 a base foi transferida para o povoado de Arembepe, em Camaçari, onde atualmente conta com infraestrutura de serviços e um centro de visitantes.
AREMBEPE
Hoje a base de Arembepe monitora a região que concentra o maior número de desovas do litoral continental do país – 2.674 na temporada anterior – gerando cerca de 180 mil filhotes a cada temporada, principalmente das espécies cabeçuda e de pente. A base da Praia do Forte cobre mais 30 quilômetros entre a foz do Jacuípe e a foz do Imbassaí, incluindo as praias de Barra de Jacuípe (3 km), Guarajuba (8 km), Itacimirim (5 km) e Praia do Forte (14 km). Nesses trechos são registradas mais de 2.100 desovas a cada temporada – apesar da grande pressão da presença humana, pela alta concentração de condomínios.
Tartaruga marinha em pleno mar: ciclo de vida depende de uma desova segura nas praias
O litoral norte baiano é reconhecido internacionalmente, pelo Comitê Executivo da Convenção Interamericana para a Proteção e Conservação das Tartarugas Marinhas, como a principal área de nidificação da América Latina para as tartarugas marinhas cabeçudas e do Atlântico Sul para as tartarugas de pente. A preservação das praias em condições adequadas é essencial porque as tartarugas marinhas desovam nas praias em que nasceram, completando um ciclo de vida que remonta à época dos dinossauros.
O Projeto Tamar começou a proteger as tartarugas marinhas no Brasil em 1980. Com o patrocínio da Petrobras, por meio do programa Petrobras Socioambiental, hoje o Projeto é uma soma de esforços entre a Fundação Pró-Tamar e o Centro Tamar/ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
O Tamar trabalha na pesquisa, proteção e manejo das cinco espécies de tartarugas marinhas que ocorrem no Brasil, todas ameaçadas de extinção: tartarugacabeçuda (Caretta caretta), tartaruga-depente (Eretmochelys imbricata), tartarugaverde (Chelonia mydas), tartaruga-oliva (Lepidochelys olivacea) e tartaruga-decouro (Dermochelys coriacea).
As equipes protegem cerca de 1.100 quilômetros de praias e estão presentes em 25 localidades, em áreas de alimentação, desova, crescimento e descanso das tartarugas marinhas, no litoral e ilhas oceânicas dos estados da Bahia, Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina.